sábado, 30 de maio de 2015

JÚLIO CÉSAR, WILLIAM SHAKESPEARE

ATO III, CENA II, início do discurso de Marco Antônio no funeral de Júlio César.

ANTÔNIO - Concidadãos, romanos, bons amigos,
concedei-me atenção. Vim para o enterro
fazer de Cesar, não para elogiá-lo.
Aos homens sobrevive o mal que fazem,
mas o bem quase sempre com seus ossos
fica enterrado. Seja assim com César.
O nobre Bruto vos contou que César
era ambicioso. Se ele o foi, realmente,
grave falta era a sua, tendo-a César
gravemente expiado. Aqui me encontro
por permissão de Bruto e dos restantes -
Bruto é homem honrado, como os outros;
todos, homens honrados - aqui me acho
para falar nos funerais de César.
César foi meu amigo, fiel e justo;
mas Bruto disse que ele era ambicioso,
e Bruto é muito honrado. César trouxe
numerosos cativos para Roma,
cujos resgates o tesouro encheram.
Nisso se mostrou César ambicioso?
Para os gritos dos pobres tinha lágrimas.
A ambição deve ser de algo mais duro.
Mas Bruto disse que ele era ambicioso,
e Bruto é muito honrado. Vós os vistes
nas Lupercais: três vezes recusou-se
a aceitar a coroa que eu lhe dava.
Ambição será isso? No entretanto,
Bruto disse que ele era ambicioso,
sendo certo que Bruto é muito honrado.
Contestar não pretendo o nobre Bruto;
só vim dizer-vos o que sei, realmente.
Todos antes o amáveis, não sem causa.
Que é então que vos impede de chorá-lo?
Ó julgamento! Foste para o meio
dos brutos animais, tendo os humanos
o uso perdido da razão. Perdoai-me;
mas tenho o coração, neste momento,
no ataúde de César; é preciso
calar até que ao peito ele me volte.


Adiante, Marco Antônio mostrará aos presentes os furos que as espadas fizeram na túnica de César e relaciona-os com cada um dos traidores, carregando nas tintas com Bruto. E diz do testamento de César, que deixou dracmas e seus bens para o povo de Roma. Discurso comovente, argumentação brilhante, em seus detalhes sangrentos, versos definitivos.
No início deste Ato III, na Cena I, a primeira fala é de César. Fala/reflexão/verso que entra para a história da literatura: "Chegaram os idos de março".
Extraí o trecho do vol. IX das Obras Completas, que aqui tenho, da editora Melhoramentos, em 2a. edição, dos anos 1950, ainda em bom estado. A tradução é de Carlos Alberto Nunes.

domingo, 24 de maio de 2015

METAMORFOSES DO CRAVO, RAFAEL ALBERTI


A pomba se equivocou.
Se equivocava.
Quis ir pro norte foi pro sul.
Pensou que o trigo era água.
Se equivocava.
E que as estrelas eram orvalho;
que o calor era nevada.
Se equivocava.
Que tua saia, sua blusa;
teu coração, sua casa.
Se equivocava.
(Ela adormeceu na praia;
Tu na ramagem mais alta).



Extraído de O prazer do poema, uma antologia pessoal, de Ferreira Gullar, tradução do próprio antologista, publicado pelas Edições de Janeiro, RJ, 2014.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

DÁ A SURPRESA DE SER, FERNANDO PESSOA



Dá a surpresa de ser.  
É alta, de um louro escuro.  
Faz bem só pensar em ver  
Seu corpo meio maduro. 

Seus seios altos parecem  
(Se ela tivesse deitada)  
Dois montinhos que amanhecem  
Sem Ter que haver madrugada. 

E a mão do seu braço branco  
Assenta em palmo espalhado  
Sobre a saliência do flanco  
Do seu relevo tapado. 

Apetece como um barco.  
Tem qualquer coisa de gomo.  
Meu Deus, quando é que eu embarco?  
Ó fome, quando é que eu como ?



Extraído de  "Cancioneiro", edição eletrônica de domínio público, Ciberfil Literatura Digital. 

sábado, 9 de maio de 2015

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


DATA
      
         (à maneira d'Eustache Deschamps)


Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo que mata quem o denuncia
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rasto
Tempo de ameaça



A propósito do nosso tempo, este poema da estupenda poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, extraído de "Poemas Escolhidos", editado aqui pela Cia das Letras, em 2004.

domingo, 3 de maio de 2015

LIVROS PESAM APENAS NA ALMA



Livros pesam apenas na alma.
Há quem os considere um estorvo no ambiente.
Quem reduziu sua presença no lar a uns dois ou três exemplares.
Quem os prefira agora virtuais.
Quem os considere pesados ao bolso.
Ou mesmo quem reclame do peso deles na sacola.
Não eu.
Compro aqueles que me cabem, não me apresso.
Renovo edições na medida do possível.
Loto com eles estantes, caixas e mesas e mesinhas.
Muitos, presentes de minha amada.
Quero mais, não me nego a seu cheiro de tinta, ao manuseio.
Tenho as três edições brasileiras do "Ulisses", de Joyce.
Tenho as duas edições em português do "Infinite Jest", de D. F. Wallace.
Tenho toda a obra de Shakespeare numa edição da Melhoramentos, dos anos 1950.
Ou eles me têm, para ser mais preciso.
Como deve ser.
Livros pesam apenas na alma.