quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

JORGE AMADO, UMA BIOGRAFIA, de JOSELIA AGUIAR




    Tão esperado quanto essencial. Devorei por inteiro nesses três dias natalinos. Lê-se ao gosto do freguês: grande reportagem, extenso perfil biográfico, romanção ou uma biografia, como quer a autora. De qualquer forma, leitura proveitosa e estimulante. Fiquei agora me coçando pra ler mais uma vez alguns dos romances amadianos. 

     A obra de Jorge Amado está na base da minha formação de leitor e de escritor. Depois dos livros de Lobato, caiu-me nas mãos, por intermédio da minha professora de português no Ginásio de Ibotirama, Vitória Rodrigues, a obra completa (até então, 1970) de Jorge. Encarei até "Subterrâneos da liberdade" que, nos meus verdes anos, pareceu-me um cipoal espinhento. 

     Essa biografia que Joselia Aguiar preparou durante sete anos de pesquisas, leituras e entrevistas, entregue ao público pela editora Todavia, permite ao seu leitor uma compreensão mais viva do homem familiar (seus casamentos com Matilde, com quem teve Lila, e com Zélia, com quem teve João Jorge e Paloma), do ativista político (autor da emenda constitucional que instituiu a liberdade religiosa no Brasil) e do escritor prolífico (romances, biografias, livros infantis, guia turístico) que foi Jorge Amado, o Vermelho. Mais ainda: do seu gosto pelas grandes amizades, pelas viagens, pela defesa dos mais necessitados, por tudo que se diz Bahia, no que há de mais extenso e profundo.

   A própria autora reconhece que "Jorge Amado é uma área de investigação interminável". Seu trabalho é admirável, merece todos os aplausos, justificou a ansiosa espera pelo livro. De minha parte, emocionei-me com a história de Matilde e Lila. Os trechos do diário de Lila, morta aos quinze anos, dizem bem da precoce maturidade, enorme sensibilidade e do potencial narrativo que a adolescente possuía: "As cigarras cantam feito doidas anunciando o verão que se aproxima. [...] Graças a Deus já estamos em dezembro. Eu não devia dar graças a Deus, é menos um dia na vida, mais um passo para a morte. Mas é também mais uma passo para a cura ou para a verdade". Coisa minha, por isso mesmo a registro: Lila entra para o rol de minhas heroínas particulares. 

     E viva Jorge!

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

O INTRUSO, de RUY ESPINHEIRA FILHO



O intruso, Ruy Espinheira Filho

                                  Em parceria com Machado de Assis


I
Logo que sua mãe morreu, 
Dom Casmurro foi visitar a casa 
da infância e juventude, 
porém ela, a casa, 
a casa toda, 
o desconheceu.

II
No quintal, nada sabiam dele
a aroeira, a pitangueira, o poço,
a caçamba velha e o lavadouro.
O tronco da casuarina, 
que ficava ao fundo, 
em vez de reto, 
como outrora, 
tinha agora um ar de 
ponto de interrogação, 
como se pasmasse diante 
do intruso.

III
Correu, então, o Dom, os olhos
pelo ar, 
buscando algum pensamento que ali pudesse
ter deixado 
e não achou nenhum.

IV
Também não entendeu 
o sussurro da ramagem, 
que sugeria ser a cantiga
das manhãs novas. 
E o grunhido dos porcos lhe pareceu 
uma espécie de troça concentrada 
e filosófica 

V
Sim, tudo estranho, estranho. 
E então deixou, 
o Dom, 
que demolissem a casa.

VI
Bem, fico pensando nesse homem 
do Capítulo CXLIV 
e encontro a mim mesmo em casas e cidades 
idas e vividas. O intruso, 
o estranho 
que elas jamais viram antes. 
Porque, na verdade, não sou 
quem ali esteve e viveu. Sou
outro, 
outro ser e outra 
vida.

VII
Não pode, pois, haver reconhecimento. 
Nem de mim nem de qualquer 
na mesma condição. A menos 
que tenhamos deixado Argos 
à nossa espera, 
pois, mesmo quase cego e coberto 
de sarna e pulgas, 
nos receberá com seu último alento 
e nossa última lágrima. 
Argos, apenas ele,  que, 
na verdade, 
não reconhece o intruso e sim 
o que nele, cão, nunca partiu...

VIII
Mas, afinal, quantos de nós merecem 
essa fidelidade de milênios?

IX
Não pode haver diversa conclusão: 
acabamos sendo, 
todos, 
aquele do Capítulo CXLIV, 
que se retira como desconhecido porque 
nunca realmente esteve ali. 

X
Foi outro quem ali esteve, 
outro. 
E o que vem, o intruso, 
não consegue enganar a casa, 
a aroeira, a pitangueira, o poço, 
a caçamba velha, o lavadouro, 
a casuarina, 
a cantiga da ramagem e a sabedoria irônica 
dos porcos, 
que não acreditam em fantasmas. 


Ruy Espinheira Filho é poeta, romancista, professor, cronista e jornalista. Tem mais 20 livros publicados, entre eles As sombras luminosasElegia de agostoMemória da chuvaSob o céu de Samarcanda e Um rio corre na Lua. 

O Intruso é poema inédito em livro e foi publicado pelo jornal Cândido, da Biblioteca Publica do Estado do Paraná, edição de dezembro 2018.
  • Foto> Paolo Paes, Flica