quinta-feira, 22 de agosto de 2019

TORTO ARADO, de Itamar Vieira Junior




   Aqui está um belo romance, um grande prosador.
   Aqui está um povo inteiro a se movimentar no tempo.
   Abrigado pelas asas dos encantados.
   A dançar o jarê, a cavoucar a terra, a recolher peixes nas torrentes.
   Daqui flui suor e cheiro das peles negras.
   E muito sangue, também.
   Pois não há movimento que fuja a desfecho sangrento.
   E não há pessoa ou povo que suporte por muito tempo açoite.
   Aqui a memória se aviva, revê o ciclo doloroso da servidão.
   E a agitação de corpos e mentes no esforço para rompê-lo.
   Aqui mora a família Chapéu Grande, uma que merece verbete.
   Pois grande é o coração do serviço de cura.
   Aqui está a prova de que não há tema esgotado.
   Torto arado se irmana a Tempo de espalhar pedras.
   Itamar Vieira Junior finca o pé no topo.
   E faz isso por cavar profundo na alma.
   Por valorar os caminhos e as tormentas de sua etnia.
   Por escrever sobre o que bem conhece.
   Adentre, leitor, na esgotada Chapada Velha.
   Sem diamantes, mas com os coronéis de sempre.
   E o povo deseirado, destelhado, coberto apenas por barro seco.
   E conheça duas irmãs, como outras tantas, a viver suas desditas.
   No fio do corte.
   Nas covas do Viração.
   Na agitação de servir a uma antiga entidade.
   Quanto cabe de revolta num silêncio forçado?
   Donana sabia, Belonísia também, Bibiana aprendeu.
   Não há vida sem loucuras repentinas, pois a dor assume essa forma.
   O que foi se repete, pra nossa desgraça e vergonha.
   Torto mundo, vidas tortas, coisa sem jeito, pelo que vemos na tevê.
   Mas é preciso conhecer, reconhecer até aprender a servir e a perdoar.
   O tapa de Mãe Salu precisa marcar de vez o rosto do Brasil.


Torto arado, de Itamar Vieira Junior, romance vencedor do Prêmio Leya 2018, publicado no Brasil pela Editora Todavia, em 2019.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

PROFUNDANÇAS 3, antologia literária e fotográfica



Na próxima sexta-feira, 23.08, ocorrerá o lançamento virtual da coletânea literária e fotográfica Profundanças 3. A obra organizada pela professora e poeta Daniela Galdino, em parceria com a Voo Audiovisual, reúne poemas, contos, ensaios fotográficos e estará disponível para download gratuito em: http://vooaudiovisual.com.br/projects/profundancas3/


O lançamento da antologia contará, ainda, com o Sarau Profundanças, durante a 13ª edição do IC – Encontro Internacional de Artes, no dia 25.08, próximo domingo, em Salvador/BA.  No sarau, que terá transmissão ao vivo pelas redes sociais de Profundanças, estarão presentes dez das escritoras que compõem a terceira edição da coletânea. 


Em sua terceira edição, Profundanças homenageia Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro brutalmente assassinada em 2018, e Nátali Yamas, jovem fotógrafa negra com forte atuação em Itacaré/BA, que assina as imagens da capa e das páginas de transição. Duas mulheres negras de gerações e territórios diferentes, mas que se encontram a partir do discurso em sua arte e vivência política, de enfrentamento e denúncia do machismo e racismo e pela busca do bem viver da população negra e periférica, especialmente de outras mulheres negras, base fundamental da pirâmide social brasileira.


Composta por textos literários de 22 escritoras da Bahia, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e São Paulo, cujas imagens foram captadas por 22 fotógrafes, a antologia literária e fotográfica visa confluir os diversos olhares através da horizontalidade, dos fluxos e dos encontros entre mulheres, que escrevem a partir dos seus lugares de diferenças.


Desde sua primeira edição, em 2014, o projeto tem como propósito combater a invisibilidade de escritoras nos campos literário e editorial. Para isso, se soma a outras iniciativas de difusão da literatura escrita por mulheres. Com grande circulação nas redes sociais, a coletânea é uma produção independente que se desenvolve com o apoio de uma ampla rede de colaboradores, dentre fotógrafes, designers e produtores. 


Comemorativa dos 5 anos de atuação, a terceira edição do projeto atinge a marca de 51 escritoras com a publicação de poemas e escritos de A Luz Bárbara (PB/SP), Bárbara Uila (BA), Cynthia C S Barra (BA), Daniela Galdino (BA), Ezter Liu (PE), Francisca Araújo (PE), Gessyka Santos (RN), Isabelly Moreira (PE), Joana Velozo (PE/ESP), Jovina Souza (BA), Marina Melo (SP), MonaRios (PE), Mônica Menezes (BA), NegrAnória d'Oxum (BA), Odailta Alves (PE), Odília Nunes (PE), Paula Santana (PE), Raiça Bonfim (BA), Tatiana Dias Gomes (BA), Tereza Sá (BA), Vânia Melo (BA), Yasmin Morais (BA). Fazem parte da publicação também os ensaios fotográficos de Andreza Mona (BA), Ângelo Azuos (PE), Álvaro Severo (PE), Analu Nogueira (BA), Brenda Matos (BA), Diego Mallo (Espanha), Eline Luz (BA), Fafá Araújo (BA), Laís Aranha (SP), Luísa Medeiros (RN), Maria Ruana (PE), Marianna Souto (PE), Mylena Sousa (SP), Nathália Miranda (BA), Nathália Tenório (PE), Renata Pires (PE/França), Sarah Fernandes (BA), Silvia Leme (BA), Tacila Mendes (BA), Tom Correia (BA), Uiara Moura, Yalli Borges (PE).


Serviço:
O que: Lançamento virtual de Profundanças 3 - Antologia Poética
Quando: 23 de agosto de 2019


O que: Sarau Profundanças no 13º IC: Encontro das Artes
Quando: 25 de agosto de 2019
Hora: 17:30
Onde: Salvador/BA (Casa Rosada - Barris)
Transmissão online: no facebook @profundancas e no Instagram @profundancas_antologia 

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

UMA HISTÓRIA DO PARAÍSO & outros poemas, RUY ESPINHEIRA FILHO

   Eis que finalmente tenho em mãos "Uma história do paraíso", o mais recente livro de poemas inéditos de Ruy Espinheira Filho. Lançado no dia 25 de julho passado, na sede da editora Patuá, Vila Madalena, São Paulo, o livro reúne em suas cento e poucas páginas outra leva do lirismo peculiar do autor, um produtor incansável de poemas antológicos. Direi mais, adiante, depois de outras leituras e outras emoções. Trago aqui um exemplo de poema pleno, irretocável, daqueles que ao fim da leitura nos deixa mergulhados em revoltas considerações sobre o que verdadeiramente importa na vida.


UM CASO DE AMOR

1
Já era uma certeza: ele a amaria
por toda a vida.

2
E foram beber um vinho.
E na segunda taça lhe declamou
Jorge de Lima:
A garupa da vaca era palustre e bela...

3
Declamou comovidamente o soneto.
E, ao fim, fitou o seu belo rosto, os olhos,
em busca de emoção.

4
E não havia nenhuma.

5
Ela apenas o fitava de maneira impassível.
Bebeu mais um gole, confuso: certamente
declamara muito mal,
teria que tentar fazer melhor.

6
E tentou.
A garupa da vaca era palustre e bela...

7
Nunca havia declamado tão apaixonadamente.
Sentia nos olhos uma lente de águas
trêmulas.
Através das quais via novamente a
impassibilidade.
Quase soluçou, mas se conteve.


Apressou, com generosos goles, o fim da garrafa.
Pagou a despesa. Levou-a até a casa, de táxi,
despediu-se com um aceno.

9
Voltou ao bar. E, então,
concluiu:
impossível alguém
sem nada sentir ao ouvir que
A garupa da vaca era palustre e bela...

10
Pediu um tinto Gran Reserva e,
com a emoção de um homem livre,
ergueu-se um brinde,
feliz de alexandrinos que certamente amaria
por toda a vida
e que estariam sempre a lembrar-lhe,
bela e generosamente,
que
A garupa da vaca era palustre e bela...