terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

COMO O SOLDADO CONSERTA O GRAMOFONE, SASA STANISIC



   Mais do que da morte de vovô, eu sentia medo daquele luto gigantesco a arrastar seus joelhos protagonizado pela minha avó, sozinha, como vou pode viver sozinha! Vovó batia contra o peito e implorava, aos pés de vovô morto, para não continuar vivendo sem ele. Eu só conseguia mais respirar se fosse rapidamente, e mesmo assim com dificuldade. Vovó estava tão fraca que eu tinha a impressão de que o corpo dela cairia ao chão e ali ficaria, totalmente mole, mole e redondo. Na televisão, uma mulher grande pulava na areia e se alegrava com isso. Aos pés de vovô, vovó gritou chamando os vizinhos, eles desabotoaram a camisa dele, os óculos de vovô resvalaram, sua boca estava torta  -  e eu recortei, como sempre fazia quando não sabia mais o que fazer, pequenas figurinhas de papel, mais estrelas para o meu chapéu de mágico. Apesar do medo, e tão pouco tempo depois de uma morte, eu via que o cachorro de porcelana de vovó havia caído de lado em cima da televisão, e que os pratos com as espinhas de peixe da noite passada continuavam sobre a toalha de mesa de crochê. Eu ouvia cada uma das palavras dos vizinhos perambulando pela casa e entendia tudo apesar dos gemidos e lamentos de vovó. Ela se agarrava às pernas de vovô, vovô escorregava para a parte da frente do sofá. Eu me escondia no canto, atrás da televisão. Mas mesmo atrás de mil televisões eu não teria conseguido me esconder do rosto desfigurado de vovó, nem de vovô virado, quase caindo do sofá, nem do pensamento de que meus avós jamais haviam sido tão feios quanto agora.


   Um trechinho do romance "Como o soldado conserta o gramofone", de Sasa Stanisic (perdoem-me não saber colocar os sinais gráficos que pontuam o nome do autor em sua língua natal), escritor nascido na atual Bósnia-Herzegovina, traduzido para o nosso português por Marcelo Backes e publicado aqui pela Record em 2009. Lendo, gostando do que leio e lembrando um ensaio de James Woods presente em "A coisa mais próxima da vida", publicado pela editora Sesc, que degustei no final de semana passado  -  se não me engano, "Observação séria"  -, em que chama atenção para a qualidade dos romancistas em observar e captar os detalhes da vida e de uma cena. Esse trecho de Stanisic me pareceu exemplo precioso.


sábado, 17 de fevereiro de 2018

CHAMAR RAUL




   Não faço ideia de como atravessarei este ano.
   Um ano de eleição presidencial.
   Fanáticos se engalfinham desde sempre nas redes sociais.
   Nesse mundo que tem valor para os contemporâneos.
   (Eu não sou contemporâneo de mim mesmo).
   De verdade, mesmo, será foda com ph de farmácia.
   Bandos de mentirosos e bravateiros disputam o poder. 
   Quase todos corruptos de carteirinha.
   Os aficionados, que mais parecem viciados, fazem o movimento.
   A patrulha internáutica, a difamação eterna.
   Do meu lado, sei que todo mês pagarei o duodízimo à canalha.
   O preço por ter trabalhado dignamente até quando pude.
   Todo mês.
   Por 18 anos, todos os meses, inclusive sobre o 13º.
   Todo mês arrancam e arrancarão da minha aposentadoria cerca de 20% do seu valor.
   Para cobrir deficit do meu fundo de pensão.
   Deficit fabricado por iniciativas temerárias.
   Determinadas pelo poder central que detém seu controle.
   Para financiar iniciativas duvidosas.
   E gerar imensas propinas.
   Então, durante 18 anos, saquearão minha aposentadoria em 20% para cobrir rombos produzidos por esse pessoal que vampiriza o poder em nome do povo, de um futuro melhor, de uma merda publicitária qualquer.
   Não faço ideia de como atravessarei este ano.
   Não tenho notícia de óbitos por excesso de vômito.
   Já sinto engulhos.
   E dizem que é minha obrigação votar.
   Talvez uma rima forte seja a solução.
   Rrrrrrraaaaaaauuuuuuuuuuuullllllll.
 


quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

ESTAÇÃO MORTE




   Como não crer em Destino, se nos destinamos à morte?
   Sabemos disso e agimos costumeiramente como se imortais fôssemos.
   Empinamos o nariz, e outras partes, e arrostamos o tempo, heróis de porra nenhuma.
   Alimentamos rancores e ódios, cultivamos inimizades, ampliamos distâncias.
   Fabricamos couraças de arrogância e medo, crentes numa força que não possuímos.
   Fazemos de conta que não há esquinas no mundo. 
   Então as esquinas se dobram implacáveis sobre nós, ilusionistas de merda.
   Construímos casas, compramos carros, vestimos o que de mais caro houver.
   Cobrimos nosso "cadáver adiado" num esforço inútil de embelezamento.
   E não ouvimos a gargalhada estridente anunciando a estação final.
   Jamais ouvimos, não queremos ouvir, crianças imbecis que somos.
   Fingimos não saber que a estação final pode ser a próxima.
   Nem mesmo aspiramos a condição de Davi perante Golias, somos derrotados de princípio.
   Então criamos ficções próprias de imortalidade, alimentando a cegueira dos tontos.
   E de repente, não há mais tempo.
   Tempo para nada.
   Para nenhuma de nossas inutilidades.

domingo, 11 de fevereiro de 2018

CÉUS E TERRA, FRANKLIN CARVALHO



   Pois há céus em demasia e uma terra por sina. 
   Entre uns e outra, o caminho se abre a mortalha.
   E gente tanta que a colheita não cessa.
   Há o castigo e o imprevisto, culpados e inocentes, pouco importa.
   O lugar, qualquer que seja, é passagem, entreposto.
   Uma história assim, de um lugar e de um povo, na voz de um morto sem cabeça faz mais sentido.
   Uma voz que se sustenta juvenil, curiosa e espantada, no tom mais afinado.
   E assim, lugar e povo atravessam o tempo, entre céus e terra.
   Sem desprezar os estragos de uma tromba d'água.
   E aqueles outros estragos do aprisionamento da miséria e das revelações das janelas da riqueza.
   E do cheiro das novidades.
   Um lugar assim jamais desaparece do mapa. De nenhum mapa.
   Talvez daí venha o primeiro valor desse romance de Franklin Carvalho.
   Um lugar ali entre coração e memória, um buraco a se preencher com emoção.
   Araci, Bom Jardim, Pasárgada, Antares, Brejo das Almas, esse lugar, nossa gente.
   Céu é coisa fina, oposto do chão duro opressor.
   "Disse certa vez que no céu poderíamos visitar o melhor dia de nossas vidas, no passado, brincar na melhor tarde de nossa infância, reencontrar os melhores amigos..[...] E podemos voar, ele disse isso aos meninos, sentado com eles na varanda, voar sobre a cidade de Araci ou sobre o mundo, ou nadar na areia sob os pés das pessoas, e nosso ouvido ouve tudo que acontece no universo...[...] No céu somos como Deus, e vemos a gema dentro do ovo."
   Certo é que há muito brilho em "Céus e terra".
   E uma consistência de verdade bem palpável,  sim, sim, sim.
   O menino Galego eu conheci. É possível reconhecê-lo por aí e alhures.
   Esse nós explorado e confiante no sol que nasce, submetido e flagelado, de olhos abertos a tudo que faísca e penumbra, crente na tremeluz, na promessa de frescor e de aventura.
   Alguém que adquire juízo por ter perdido a cabeça.



   "Céus e Terra", de Franklin Carvalho, Editora Record, 2016, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, categoria Romance. O Franklin é jornalista, natural de Araci, Bahia, e autor de um belo romance, cuja leitura indico com entusiasmo. Minha primeira leitura desse carnaval de 2018.




quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

FRANTUMAGLIA, ELENA FERRANTE (3)




   Não é a minha ausência que gera interesse pelos meus livros, mas é o interesse pelos meus livros que gera atenção midiática em relação à minha ausência. Temo, enfim, que minhas escolhas sejam um problema maior para os jornalistas  -  afinal, é o trabalho deles  -  do que para o público. A meu ver, o que interessa aos leitores é o livro e a energia que ele liberta. Se não tem uma foto na capa, paciência. Se a autora não aparece na televisão, paciência. Quem lê realmente encontra minha verdadeira imagem de autora na escrita. Se o livro não funciona, por que o leitor deveria se ocupar da autora? E, se funciona, a autora também não sai da escrita como o gênio da lâmpada de Aladim? O livro é tudo e vem antes de tudo se realmente amamos ler. Fora dos meus livros, o que sou? Uma senhora igual a tantas outras. Portanto, deixem em paz os autores, amem  -  se valer a pena  -  o que eles escrevem. É esse o sentido da minha pequena polêmica.


Resposta a Árni Mathiasson, entrevista publicada em 2015, na Islândia.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

ZECA BAHIA, PORTO SOLIDÃO



   Então deu-se que Zeca Bahia desatracou, içou velas, partiu.
   Bordejamos palcos e eventos musicais por aí, em tempos outros.
   Uma figura sempre presente lá na minha terra, em nossa prosa.
   Como não ser?!
   Faço esse registro melancólico, entristecido de vez.
   Mesmo porque carnaval já não me diz nada faz tempo. Inda mais por agora.

   Rimas de ventos e velas
   Vida que vem e que vai
   A solidão
   que fica e entra
   me arremessando contra o cais

   Versos poderosos, música eterna, lembrança da pele e dos sonhos.

   Viva Zeca Bahia!
   Para sempre viverá!

sábado, 3 de fevereiro de 2018

FRANTUMAGLIA, ELENA FERRANTE (2)



   Mais um fragmento ferrantino, para conhecer melhor a escritora da Tetralogia Napolitana:

   "O discurso a respeito daquilo que o senhor define como 'manter-se distante dos meios de comunicação de massa' é mais complicado. Acredito que, na raiz dessa questão, além dos traços de caráter que já mencionei, esteja um desejo um pouco neurótico de intangibilidade. Na minha experiência, o cansaço-prazer de escrever toca a todos os pontos do corpo. Quando o livro está terminado é como se tivéssemos sido revistados com intimidade excessiva e tudo o que desejamos é recuperar a distância, voltar à integridade. Descobri, publicando, que há certo alívio no fato de que, no momento em que se torna livro impresso, o texto vai para outro lugar. Antes, era ele que me cobrava; agora, caberia a mim correr atrás dele. Mas decidi não fazer isso. Quero ser capaz de pensar que, se meu livro entra no circuito das mercadorias, nada é capaz de me obrigar a fazer esse mesmo percurso. Mas talvez eu também queira ser capaz de acreditar, em certos momentos, ou mesmo sempre, que aquele 'meu' que atribuo ao livro é no fundo uma convenção, tanto que quem sentirá nojo ou entusiasmo acerca da história narrada não poderá  -  com uma transposição lógica equivocada  -  sentir nojo ou entusiasmo a meu respeito. Os velhos mitos sobre a inspiração talvez dissessem ao menos uma verdade: quando realizamos um trabalho criativo, somos habitados por outra pessoa, em certa medida, nos tornamos outra pessoa. Mas, quando paramos de escrever, voltamos a ser nós mesmos, a pessoa que comumente somos, nas ocupações, nos pensamentos, na linguagem. Por isso, agora eu sou eu de novo, permaneço aqui, faço minhas atividades cotidianas, não tenho nada a ver com o livro  -  ou melhor, entrei nele, mas agora não posso mais entrar. Nem, por outro lado, o livro pode voltar a entrar em mim. Só me resta, portanto proteger-me dos efeitos dele e é isso que tento fazer. Eu o escrevi para me libertar dele, não para permanecer prisioneira."

   Trecho de uma carta não enviada, datada de 1995, endereçada a Goffredo Fofi, em resposta a questões por ele apresentadas à autora. Em "Frantumaglia", editora Intrínseca, tradução de Marcello Lino, 2017.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

FRANTUMAGLIA, ELENA FERRANTE


   Dizem que o anonimato é uma benção para um escritor.
   Jornalistas, mundo afora, insistem em saber da escritora italiana que assina Elena Ferrante por que ela optou pelo anonimato. E recebem como resposta recorrente que não, ela não optou pelo anonimato, pois assina seus livros, todos sabem que Elena Ferrante os escreve; optou, sim, por não ceder ao circo da mídia.
   Admirável, admirável, seja lá quem for que assine Elena Ferrante.
   Neste post, deixo um petisco do imprescindível "Frantumaglia":
   "Sua carta, justamente por causa da narrativa limpa que a distingue, suscitou em mim a vontade de fazer uma pergunta. A pergunta é a seguinte: por que, apesar ter lido meu livro há um ano e, como disse, tê-lo apreciado, o senhor só amadureceu a ideia de entrar em contato comigo agora, após saber que haverá um filme baseado em Um amor incômodo?
   [...] O senhor escreve de forma menos brutal do que neste meu resumo: seu livro me diz algo, mas seu nome não me diz nada. Pergunto: se meu livro não lhe tivesse dito nada, mas meu nome tivesse dito alguma coisa, o senhor teria demorado menos tempo para me pedir uma entrevista?
   [...] Quero perguntar o seguinte: um livro é, do ponto de vista midiático, antes de mais nada o nome de quem o escreve? A fama do autor, ou melhor, da persona do autor que entra em cena graças à mídia, é um suporte fundamental para o livro? Não é notícia para os cadernos de cultura dos jornais, o fato de um bom livro ter sido lançado? É notícia, por outro lado, o fato de um nome capaz de dizer algo às redações ter assinado um livro qualquer?"
   Arrá!!! Durmam com essa jornalistas resenheiros, em especial, o sr. Francesco Erbani, que lhe disse em carta ter lido "Um amor incômodo" e ficado sem fôlego, mas que o deixou boiando na memória, pois seu nome não lhe dizia nada, até ler que o filme seria feito...blá...blá...blá.
   Fica minha admiração, meu respeito ainda mais concretado por quem assina Elena Ferrante, depois de ler "Frantumaglia", uma coleção de cartas, artigos e textos diversos em que a autora enfrenta editores, jornalistas, cineastas e leitores, sempre firme na defesa de sua vida pessoal, de sua liberdade de escrita, de seu mundo imaginativo. Uma pena afiadíssima, brilhante, em meio à ferrugem e à escuridão literária desses tempos turvos.

"Frantumaglia, os caminhos de uma escritora", de Elena Ferrante, tradução de Marcello Lino, editora Intrínseca, 2017.