segunda-feira, 29 de abril de 2019

GAME OF THRONES





    A série Game of Thrones - GoT tem ambiência sombria, múltipla direção e custos altos. Pois bem: desde a sétima temporada a série meio que desbrava o enredo, posto que GRRMartin não concluiu a saga nos livros que publicou. Presa ao "estilo" que adotou, GoT provoca críticas e comentários os mais diversos a cada episódio. Eu li os cinco tomos publicados d'As crônicas de Gelo e Fogo e garanto a vocês que não senti falta do que foi extirpado da trama em benefício de clareza e agilidade. Mas há quem...
   
    Bem, dos vários textos que li durante o day after da Batalha de Winterfell ressaltam críticas à escuridão das cenas, não bastasse a luta ter sido travada durante uma noite invernal. Não vejo motivo para queixas: as melhores cenas do 3o episódio só foram possíveis por conta da escuridão reinante (sem trocadilho). Senão vejamos: 1) o acendimento das foices dos dothraki, pela feiticeira Melisandre, exigia o contraste para que a sequência tivesse o efeito plástico que teve, 2) o avanço dos dothraki na direção do exército dos mortos, na direção da escuridão, visto de perto ou à distância, foi bem bacana, 3) e o choque dos dothraki com a massa do exército dos mortos, como foi filmado, realizou momento precioso de puro cinema - luz e escuridão, a luz se apagando aos poucos até a escuridão imperar. Numa economia gigantesca de recursos de todos os naipes, a direção mostrou o enfrentamento e a derrota dos dothraki apenas com jogo de luz e sombra - isto é cinema. Mais que isso, representou uma economia enorme para a produção e para os olhos dos telespectadores, que teriam pela frente muitas cenas sangrentas. Considerei primorosa a cena 3.

     No mais, o episódio 3 exibido ontem teve o condão de encerrar a luta contra o Rei da Noite e seu exército de mortos, vilões sem voz e sem um propósito maior a alcançar, sem qualquer empatia. Agora vamos a Cersei, esta sim, vilã das mais impressionantes e admiráveis.


Foto: Arya, personagem vivida por Maise Williams, Bol

quarta-feira, 24 de abril de 2019

SONS DE MERCÚRIO


    
     Seguindo pela Linha Verde até Sergipe, ouvimos pela primeira vez o cd Entre crendices e amores pagãos, assinado por Sons de Mercúrio, banda de Feira de Santana. O álbum tem direção artística de Cartre Sans e Mohzah Nascimento, parceiros em todas as composições (em uma delas, Thiago junta-se à dupla). São treze canções que podem muito bem ser apreciadas como movimentos de uma sinfonia, mesmo porque as letras giram em torno do tema/título do disco.

     A presença de guitarras e da batida típica do velho rock modulam a sequência de canções, como se fosse um roteiro do show da banda. As melodias, as letras, os arranjos, os vocais se sucedem de forma harmônica, com uma base técnica notável, consolidando o entendimento de que Entre crendices e amores pagãos é, sim, um excelente disco.


     De minha parte, enquanto ouvia Sons de Mercúrio, fiz uma viagem paralela, emocional e bem particular, revisitando os anos 1970 e identificando a irmandade daquele som com o trabalho imortal da Banda de Pau e Corda, do Quinteto Violado, do Pessoal do Ceará, de Sá, Rodrix & Guarabira... Uma irmandade assim é bem mais que um elogio, é um selo de rara qualidade que confiro às maviosas toadas, cantigas e rocks-rurais que me embalaram ao volante do carro na manhã da quinta-feira santa. Enquanto, no íntimo, lastimava por todos que ainda não ouviram Entre crendices e amores pagãos, um disco arrojado que nasce clássico, um trabalho que merece os prêmios que houver por aí na MPB e, claro, ser conhecido logo nacionalmente. 

domingo, 14 de abril de 2019

DIVISADERO, de MICHAEL ONDAATJE





      A melhor receita de vida é estar aberto a novas leituras, a novos autores, daqui e d'alhures, deste ou de outros tempos; melhor receita não só para um crescimento pessoal saudável, mas para uma atitude de correta honestidade intelectual. De outra maneira é como se aprisionar a um território e suas parcas possibilidades  -  por mais que as consideremos plenas  -  ou a um cânone gélido - por mais que o consideremos insuperável. Como saber, se não experimentarmos? Eu sou um que se considera imperfeito, incompleto e ansioso por conhecimento  -  o que sou, o que tenho, o que conheço, o que sei, ou o que penso ser, ter, conhecer e saber, parece-me muito pouco. E foi assim que cheguei a Ondaatje, por exemplo. Já o conhecia de O paciente inglês, filme adaptado de um romance seu. Mas não o havia lido, ainda; e isso não fazia parte dos meus planos. Até que topei com...

      Divisadero é um romance contemporâneo clássico. Narrativa entrecortada e vertiginosa, polifônica, com narradora principal complexa, mais metaliteratura e a presença dos textos clássicos dando suporte à construção dos personagens e de tudo o mais. Colette, Dumas, Hugo, Stendhal, uma verdadeira homenagem à literatura e à cultura francesa, não transcorresse grande parte do enredo em solo francês, em tempos diversos. Sem falar em Nietzsche e em Lupicínio Rodrigues. É que...

    Bem, seguindo o autor, podemos dizer que Divisadero tem na sua construção algumas frases pilares: "Temos a arte, para que não sejamos destruídos pela verdade", de Nietzsche, é uma delas, a que Anna, a narradora principal, recorre sempre como viga mestra de sua existência. Uma outra: "Se acabarei sendo o herói de minha própria vida, ou se esse posto será ocupado por outra pessoa, é o que estas páginas precisam mostrar", que bem poderia ser a epígrafe do romance. E os versos de Lupicínio, em Um favor, mal traduzidos como "Se algum de vocês a vir em suas jornadas  -  gritem-me, assobiem...", mas que o autor reconhece nas notas ter sido "o que começou essencialmente este livro".

         Divisadero se ocupa de rupturas, de partições, da busca que fazemos de nós mesmos no outro. Anna se descobre mulher com o irmão de criação, Cooper, gerando com isso o esfacelamento de seu núcleo familiar. Mais tarde, na França, Anna pesquisa a vida do poeta Lucien Segura, conhece e namora o cigano Rafael, enquanto Cooper enfrenta as durezas da jogatina e Claire, a outra irmã de criação, investiga casos para a promotoria da Califórnia. A biografia do poeta francês levantada por Anna, parte final do romance, reproduz o cerne da proposta de Ondaatje: as muitas vidas que vivemos possuem divisas bem definidas e pouco somam umas às outras. Mas deixam marcas indissolúveis, que arrastamos para sempre. É que, como afirma Anna no texto: "É a fome, aquilo que não temos, que nos mantêm juntos".


Divisadero, de Michael Ondaatje, tradução de Augusto Pacheco Calil, Companhia das Letras, SP, 2008.