domingo, 28 de novembro de 2010

HOSPITAL PÚBLICO

KC tem 22 anos. E como toda moça tem um celular bacana. Ou tinha, não sei. É que KC levou três tiros nas costas por causa do celular. Duas balas estão, ainda, alojadas em sua coluna. E faz mais de duas semanas que KC está numa cama de um hospital público em Salvador, na fila por uma cirurgia.

A mãe de KC é minha conhecida. Tenho-a visitado e ajudado como posso. Ela me diz que KC não sente as pernas. Mas que as balas queimam por dentro. E que ela sente muita dor na hora do banho.

KC não consegue dormir. Nem mesmo com remédios. Qualquer barulho a assusta. Não deixa a mãe se afastar da cama. A mãe dorme no chão, ao lado da cama. Outras mães fazem o mesmo que ela.

O fato de haver outras pessoas na mesma situação não constitui desculpa para o Estado. Uma cidadã apenas, nesta situação, já deporia contra a atuação do Estado na área da saúde. E há muitas.

Estive no Hospital na sexta-feira à tarde. Justo quando um comboio da polícia trazia feridos em conflito na avenida Bonocô. Deu nos jornais a bagaceira. São as tais emergências que adiam a cirurgia de KC.

E assim continuam lá no Hospital, KC e sua mãe, aguardando um momento de calmaria nos conflitos da cidade, para que a fila ande. E que as balas sejam retiradas da coluna de KC.

O horror, o horror, o horror é aqui.

Irei lá amanhã, de novo. Até quando, não sei.

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Estive no Hospital hoje, segunda-feira. KC saiu da "emergência" para a enfermaria. A mãe está esperançosa. Isso representa muito. O que dizer?

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O NAVIO BRANCO


"O navio branco" tocou meu coração profundamente. Começa por ter um protagonista criança; e um coprotagonista idoso. Neto e avô. Pureza e fragilidade. Dois estágios da condição humana que se situam ao largo da arrogância e prepotência dos adultos competidores. O menino não tem nome, não tem pai nem mãe, dele cuida o avô, Momun o Solícito. E as outras pessoas do "cordão", distrito, são expressão da violência, embriaguez, mesquinharia e egoísmo, coisas típicas de gente grande e sabida. No império do materialismo histórico, Momun repassa ao neto a história do povo "bugu", das montanhas da antiga Quirquízia, por meio da lenda da grande Mãe Cerva-Galhuda. Pessoas assim sofrem muito neste mundo, território privilegiado do poder humano. O menino usa o binóculo do avô para trazer o mundo distante ao toque dos seus dedos. Um mundo inalcançável, na verdade, como o navio branco no mar. E tudo o mais à sua volta se prepara em horror e dor. Um história pungente, de tirar lágrimas do leitor.

Publicado em 1967, "O navio branco", de Tchinguiz Aitmátov, foi um sucesso editorial, recebendo críticas negativas da oficialidade soviética. Ali estava a tradição oral do povo quirquiz, algo a se eliminar, como o sonho, a sensibilidade, a humanidade, a liberdade. Em 1976, o filme baseado no livro foi considerado o melhor do ano na URSS. Li o exemplar que me foi emprestado por Ruy Espinheira Filho, edição de 1991, da Editora Brasiliense.

Assim começa a narrativa:

"Ele tinha duas histórias. Uma, a sua, que ninguém conhecia. A outra, a que o avô contava. Depois não restou nenhuma. É disto que vamos falar.
Naquele ano ele completara sete anos, estava na casa dos oito.
Para começar, compraram uma pasta. Uma pasta preta de couro artificial, com fechadura e trinco de metal brilhante que engatava numa fivela. Com um bolsinho por fora para moedas. Numa palavra, uma incomum pasta escolar das mais comuns. Parece que foi aí que tudo começou."

O resto é um rol de maravilhas.

domingo, 21 de novembro de 2010

TODOS OS HOMENS SÃO MENTIROSOS

Sob a superfície do que somos capazes de expressar em palavras, jaz essa massa do indizível profundíssima e escura, um oceano sem luz onde nadam criaturas cegas e inimagináveis.


Uma frase do romance "Todos os homens são mentirosos", de Alberto Manguel, escritor nascido argentino, naturalizado canadense e que mora no interior da França (Companhia das Letras, 2010, 177 pgs.). Narrativa fragmentária que procura reconstruir a biografia de um obscuro e genial escritor argentino exilado em Espanha, A. Bevilacqua, que jamais escreveu um livro e que, no entanto, publicou a obra definitiva, "Elogio da mentira". Só por curiosidade, a segunda parte, depoimento da última companheira do escritor, inicia com a seguinte frase: "Alberto Manguel é um imbecil." É que Manguel é o primeiro narrador desse excelente romance.


Imagem: Bol Fotos.