terça-feira, 24 de março de 2015

O AMOR EM VISITA, HERBERTO HELDER

[...]
Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho,
no mosto aberto
- no amor mais terrível do que a vida.

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa e madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras.
Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável - 
em cada espasmo eu morrerei contigo.

E à alegria diurna descem as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.


Trecho final do poema "O amor em visita", de Herberto Helder, poeta português nascido em Funchal, na ilha da Madeira, em 1930, e morto ontem, dia 23.03, em Cascais, de causas ainda não divulgadas. A cerimônia fúnebre acontecerá amanhã, quarta-feira.

Considerado por especialistas como o mais expressivo poeta português da segunda metade do século XX, teve publicado no Brasil, pela editora A Girafa, o volume "Ou o poema contínuo", que reúne vários dos seus livros de poesia. Ano passado saiu seu último livro, "A morte sem mestre", pela Porto Editora; meu amigo Mário Vieira procurou por um exemplar em Lisboa, no começo do ano, e não encontrou para me trazer: a edição esgotou rapidamente. Mas me trouxe um exemplar de "Os passos em volta", uma prosa autobiográfica publicada em capa dura pela Assírio&Alvim.

Tenho uma admiração plena pelo derramamento lírico de Herberto Helder. Seus poemas longos não se confundem com o palavroso, é muito mais generosidade do criador a entrega ao leitor de sua visão particular e emocionada do mundo e da gente no mundo à procura do que, no mais das vezes, desconhece. Uma tristeza enorme por mais essa perda da literatura. Mas Herberto Helder está posto entre os grandes, os clássicos, os imortais da língua portuguesa. Sua poesia é viva, pulsante e se renova a cada leitura. O poema "O amor em visita" jamais se esgotará e dele sempre brota uma luz e uma emoção renovadas. HH era chamado de "o poeta dos poetas". Que seus livros todos sejam cada vez mais lidos.

quarta-feira, 18 de março de 2015

MINHA MÃE SE MATOU SEM DIZER ADEUS, EVANDRO AFFONSO FERREIRA



A vida é ruim; eu sei; e sem possibilidades vindouras.

Esse é o tom da narrativa que Evandro Affonso Ferreira nos entrega em seu "Minha mãe se matou sem dizer adeus". Um escritor octagenário se posta em uma mesa-mirante de uma confeitaria para escrever seu último livro. É domingo e chove muito, como nos lembra a cada início de capítulo. A conversa telepática que mantém com outros frequentadores do lugar permite uma exploração erudita da viagem humana na tarefa de viver desde tempos idos. E, também, aflorar certas verdades que falas e gestos convencionais teimam em esconder. A vida acontece dentro, talvez assim esclarecesse o narrador.

Estamos descendo desabalados pela ladeira sobre carrinho de rolimã. Minha mãe comigo no colo diz aos gritos que a vida também não tem freio. Ganhei um corte na testa; ela arranhou os braços. Agora aqui nesta mesa-mirante a poucas horas da morte descubro que minha infância não foi ruim: tive mãe-moleque; louca feia bêbada - mas encantadoramente moleque.

Ficam para trás vírgulas e artigos, no mais das vezes, entre outros penduricalhos gramaticais. Surge um ritmo correlato ao estado de ânimo do protagonista, uma pressa controlada, uma certeza de partida que requer cuidados de arrumação minuciosos. A infância revisitada e turva, as perdas, o medo instalado e algumas convicções, não menos turvas, dão substância ao texto.

Escritor-inconcluso. Com o tempo fui aperfeiçoando-me no oficio da inconclusão. Hoje sei não terminar um livro no momento oportuno. Aquele escritor judeu de Praga era exímio não concluidor de textos. Dependendo do último parágrafo digo de súbito para mim mesmo: aqui está perfeito para não ser concluído.  

Autor de "Grogotó", "Araã!",  "Zaratempô!", "Catrâmbias", entre outros, Evandro Affonso Ferreira me tem sido recomendado faz tempo pelo escritor Ronaldo Cagiano. Ontem, comecei com esse "Minha mãe...", enquanto fazia exames oftalmológicos. A dilatação de pupila não me impediu de avançar na leitura, que concluí hoje. Isso porque conquistado pela proposta, envolvido pela prosa rica e inovadora, desejei não concluir a leitura que se mostrou sempre cativante e enriquecedora. A vida pode ser, sim, muito ruim. A gente até que sabe disso. Mas há certas garçonetes ruivas e aquelas possibilidades extremas do sábado que tornam qualquer dor suportável. 

[...] não se mate, meu velho, não se mate; pense na possibilidade decepcionante do café lá do outro mundo não ser assim tão encorpado.




"Minha mãe se matou sem dizer adeus", de Evandro Affonso Ferreira, Editora Record, 2010, RJ.

sábado, 7 de março de 2015

O IRMÃO ALEMÃO, CHICO BUARQUE



     O texto da orelha diz que Chico Buarque escreveu "o romance de sua vida". A afirmação permite, claro, dupla leitura: uma autobiografia e o melhor livro escrito por ele. É autobiográfico, sim, mas não chega a ser uma autobiografia, pois centrado em um episódio familiar e seus desdobramentos. Mas é, no meu entender, o romance de maior valor artístico escrito pelo autor multimídia. E, por isso mesmo, candidato natural a vencer todos os prêmios literários do ano. 
    Obra de ficção a partir de fato real, "O irmão alemão" tem tutano. Distante de ser um mero exercício intelectual, uma demonstração da genialidade de Chico Buarque, como foram tratados livros anteriores do autor, esse romance é uma narrativa com as marcas inconfundíveis da boa literatura. Os delírios do protagonista, na busca de um até então desconhecido irmão germânico, resulta em páginas de leitura deliciosa e que configuram com competência o perfil psicológico do personagem e o momento sócio-político em que vivia. Enquanto avança em sua investigação, o mundo dos livros, materializado pela estupenda biblioteca do pai, adquire papel fundamental na história que é contada. Dentro dos livros estão as pistas do mistério familiar. Vivo ou morto, em que país ou cidade, em que profissão, qual sua aparência, suas preferências, seu tom de voz, tudo isso motiva a escrita fantasiosa e rica do autor/protagonista.
     Sim, Sérgio Buarque de Hollanda, pai do autor, morou em Berlim entre 1929/30, teve um caso amoroso com uma alemã, que lá deixou grávida. Sim, houve uma carta da jovem alemã, Anne, falando do filho, do mesmo nome do pai. Sim, houve correspondências trocadas entre o governo alemão e o intelectual brasileiro para tratar do destino da criança.  Tudo isso é fato e reproduções desses documentos são expostas no livro. Chico Buarque foi até a Alemanha procurar o irmão, sim. Mas "O irmão alemão" é obra de ficção acabada e das melhores que li ultimamente.
    Os Hollander do livro são quatro: pai (Sérgio) e mãe (Assunta), dois filhos (Domingos, o Mimmo, e Francisco, o Ciccio). A ação transcorre dos anos 1960 ao período pós-queda do muro de Berlim, quando Ciccio, agora o professor Hollander, administrador de um blogue que trata de questões da língua portuguesa, vai até a Alemanha procurar o irmão. Mas até alcançar esse ponto, a narrativa expõe a vida estudantil nos duríssimos anos 1960, com os embates de rua e subterrâneos com a polícia da ditadura militar, as diferenças entre os irmãos Hollander, o desaparecimento de Mimmo e, principalmente, as investigações feitas por Ciccio em solo paulista até localizar o pianista pretendente citado por Anne em sua carta.
       Chico Buarque introduz, ainda, em "O irmão alemão", seu famoso senso de humor. Por tudo isso, e muito mais que deixei de fora deste comentário, o romance da vida de Chico oferece leitura prazerosa e enriquecedora. O compositor inigualável da MPB dá um passo enorme para se firmar, de forma inquestionável, como romancista dos mais expressivos na contemporaneidade. Acusado de ser um autor "frio", daqueles que não têm a espada fincada na nuca, Chico Buarque mergulha em sua história e na história da família e extrai uma narrativa prenhe de substância vital, um romance de leitura altamente recomendável.


O irmão alemão, de Chico Buarque, Companhia das Letras, 2014.

terça-feira, 3 de março de 2015

JEITO DE MATAR LAGARTAS, ANTONIO CARLOS VIANA



     Difícil definir qual o melhor conto entre os 27 da coletânea. Pelo menos 15 deles são antológicos. Destaco A muralha da China, Amarelo Klimt, Dona Katucha, Cara de Boneca, Lucy in the sky, Madame Viola..., Um traidor, Missa de sétimo dia, Batatas bravas e o conto que dá título ao livro. São contos repletos de vida e de tudo aquilo com que a vida nos premia: dor e gozo e desespero, com algum laivo de paz e conforto e, ainda, topadas inevitáveis com as garras da maldade. 

     Paulo Henriques Brito alerta, no texto da orelha, para "o traço unificador da obra" de Viana, sua temática: "pode-se dizer que todos os seus contos giram em torno do corpo e de suas vicissitudes. Ainda que o tema seja abordado por diversos ângulos, o que mais intriga o autor são seus dois pontos extremos - o corpo como mistério (infância) e como ruína (velhice)." Em Jeito de matar lagartas ganham espaço e destaque as narrativas centradas na decadência física e nas angústias que assaltam inevitavelmente quem envelhece. Brito afirma que Viana mantém "o mesmo olhar crítico e afiado, impiedoso mas profundamente humano".

     Isso significa que Jeito de matar lagartas, do sergipano Antonio Carlos Viana, avança um pouco mais o padrão de qualidade literária dos livros anteriores do autor. Quem tremeu ou se arrepiou ao ler Cine Privé, de 2009, vai encontrar neste novo livro personagens e circunstâncias singulares, daquelas inesquecíveis pela grandiosidade de sua miséria, horror e grandeza humanos. No popular: a pegada é forte, sem meios termos, na melhor linhagem dos ficcionistas ocupados em materializar sua arte sem aliviar a barra para nenhum dos envolvidos, em especial, o leitor. A linguagem segue exata, sem excessos, crua e comprometida com o que é narrado. Como diria minha mãe, Antonio Carlos Viana não alisa.

Trecho: "Era um meio de tarde de junho, um dia depois do São João, as cinzas das fogueiras ainda fumegando, o cheiro bom de pólvora no ar. Eu já sabia o que significava aquele bando de meninos em fila, esperando a vez para se esfregar nas coxas de seu Lilá. O muro do cemitério onde ele se apoiava já tinha até as marcas de suas mãos. Os meninos iam um por um, baixavam os calções, se esfregavam nele e só. Cada um levava umas folhas de mamoneira para limpar a sujeira que o outro tinha deixado e se esfregava do mesmo jeito, ensebando mais uma vez as coxas de seu Lilá, que não gemia, que não dizia nada. Também era só isso que ele permitia. Um ou outro queria ir mais longe, mas ele não deixava. Via-se que ele tinha alma bondosa, era como se sacrificasse em nome de alguma coisa que serviria mais para nossas vidas que para a dele." (Cara de boneca).

Jeito de matar lagartas, Antonio Carlos Viana, Companhia das Letras, 1a. edição, 2015.