domingo, 28 de julho de 2013

HEROICA


o herói que habitava meu pai
possuía o silêncio da faca
a fatiar por precisão o tempo

o herói que em meu pai silenciava
sofria duras necessidades
no esforço para oferecer doçuras

o herói que em meu pai sofria
calava sempre os reclamos
para calar em nós a fome

o herói que corroía meu pai
em seu sábio silêncio
trabalhava simplesmente
trabalhava

terça-feira, 23 de julho de 2013

DOMINGUINHOS, MEU PARCEIRO


Descansou, como se diz no sertão.

Conheci o José Domingos de Moraes em Brasília, por volta de 1992 ou 93, não sei precisar. Trabalhava na Comunicação Social de um banco público e o Dominguinhos foi lá apresentar seu projeto "Asa Branca". Era assim o herdeiro de seo Gonzaga: queria cantar a música nordestina em praça pública, em tudo que é cidade, e arrastar consigo seus amigos artistas pelo prazer de cantar pro povo. O patrocínio foi concedido e o Asa Branca rodou o país.

Um dia ele me falou da carência de letristas. Então eu disse que talvez tivesse alguma coisa que servisse (àquela época, eu havia deixado para trás minha vida de compositor e cantor em festivais no interior e nas mostras de som do meio universitário).

Revirei minhas pastas de escritos, produzi algo novo. E mandei pra ele em São Paulo. E foi só isso.

Um ano ou mais se passou até receber um telefonema dele: tinha uma surpresa pra mim. E a surpresa me foi entregue por Codó, seu empresário: um cd e um LP, com dedicatórias, do novo disco "Nas quebradas do sertão". E lá estava "Brincadeiras de rua", com meu nome depois do dele, os autores. Foi um dia longo, arrepiado, até chegar em casa e ouvir aquela ciranda belíssima, com um arranjo impecável de flauta na introdução e a sanfona segura e brilhante de Dominguinhos a conduzir a melodia. Houve outra canção em parceria, "Santinha", igualmente bela sendo mais delicada, mas essa ele não chegou a gravar (foi gravada por Flávio Carvalho nos anos 1990 e por Serginha nos anos 2000).

Descansou, enfim. Ficam a saudade, a honra de ter sido seu parceiro e o compromisso de manter viva sua música, divulgando-a e ouvindo-a sempre. Sujeito arretado de bom e generoso, maravilhoso artista, sertanejo firme e afetuoso.    


Imagem: Bol Fotos

segunda-feira, 22 de julho de 2013

A PIADA INFINITA, David Foster Wallace


São 1.093 páginas de literatura inovadora e surpreendente.São mais 95 páginas de notas do autor, que detalham e aprofundam o conhecimento do leitor sobre personagens, cenários e questões, digamos, de cunho científico. Um mundo próximo de se materializar ou já materializado em alguma parte. Tênis, depressão, drogas, cinema e o tempo de todos nós subsidiado por uma grande marca global. Estou na leitura, um pouco sofrida por se tratar de tradução portuguesa. Contarei mais adiante, fiquem com trechos:

"E tudo parece áspero, espinhoso e aborrecido, como se cada som ouvido ganhasse subitamente dentes." (depressão).

"O verdadeiro adversário, a fronteira contentora, é o próprio jogador. Sempre e apenas o que está lá, no campo, para ser confrontado, combatido, trazido para a mesa para fixar os termos. O rival do outro lado da rede não é o inimigo: é mais o parceiro de dança. Para nós é aquilo que é a palavra pretexto ou ocasião para confrontar o eu. Como nós somos a ocasião para ele. As infinitas raízes da beleza do tênis são autocompetitivas. Competimos com os nossos próprios limites para transcender o eu em imaginação e destreza. Desaparecemos no seio do jogo: quebramos limites: transcendemos: aperfeiçoamos: vencemos. [...] É trágico e triste e caótico e belo. Toda a vida é a mesma, como cidadãos do Estado humano: os limites animadores estão no interior, para serem mortos e chorados, eternamente." (tênis e...suicídio?)


A piada infinita, D. F. Wallace, tradução de Salvato Telles Menezes e Vasco Teles Menezes, Quetzal Editores, Lisboa, Portugal, 2012.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

ABDIAS, CYRO DOS ANJOS



O quarentão Abdias é professor em um colégio de moças. Uma delas se chama Gabriela, e basta. Abdias é casado, tem filhos, trabalha num museu, o ensino é bico. Abdias imita Tolstoi: escreve duplo diário, um para consumo da curiosidade alheia, que deixa sobre qualquer mesa, e outro, secreto, em que narra seus encontros e desencontros de pretensão amorosa. E Minas, ali, sempre Minas. O texto de Cyro chega a comover ao expor, com brilho e leveza, a moldura moral e erudita de uma sociedade afetada, presunçosa e hipócrita. Abdias engendra visitas, passeios, pesquisas, para ter Gabriela por perto. Fantasia a morte da própria mulher. Mas não há, em Minas, esperança para o que foge à tradição. Nem mesmo uma Gabriela furta-se inteiramente à família mineira. Mas sempre haverá o Rio de Janeiro para as novidades, pois não. E assim é que alguns sonhos se realizam. Isso também vale para Abdias. A eterna questão é, não custa repetir, que não sabemos direito o que fazer ao ter nas mãos o produto de um sonho. 


ABDIAS, Cyro dos Anjos, Ed. Globo, 2008

Publicado originalmente na Verbo21. 

segunda-feira, 15 de julho de 2013

SALVADOR, ZONA AZUL (IV)


Estacionamento, de novo.

Estive na Rodoviária: 9 reais a hora, 15 minutos de tolerância e 15 centavos por minuto. A Rodoviária, administrada pelo Sinart, é uma instituição pública.

Estive no Aeroporto: a mesma cobrança. O Aeroporto, administrado pela Infraero, é uma instituição pública.

Fui ao oftalmologista, que atende em um centro comercial no Itaigara. Estacionamento: 3 reais a primeira hora, 75 centavos a segunda hora, 15 minutos de tolerância e 5 centavos o minuto. O estabelecimento é privado e visa ao lucro. 

Aí está mais uma lição do liberalismo carlista. O estacionamento público em Salvador tem preço "padrão Fifa" e qualidade de estrupício.


domingo, 7 de julho de 2013

UM HOMEM APAIXONADO, Martin Walser



“Meu amor não sabe que já passei dos setenta. Eu também não sei.” Está posto assim o cerne do romance de Walser que, publicado na Alemanha em 2008, provocou alvoroço. O homem apaixonado: Goethe, O Conselheiro; o objeto da paixão: Ulrike, na flor dos seus dezenove anos. “Até que ele a visse, ela já o havia avistado.” O texto de Walser não descuida do contexto político, dos diversos interesses de Goethe, dos inevitáveis jantares e bailes, mas sustenta a delicadeza poética que o tema e a circunstância exigem. 


Goethe fala, escreve cartas, poemas e um romance de título igual ao que habita; Goethe experimenta beijos, uma queda literal e o ciúme por um rival mais jovem; Goethe quer casar-se com a brilhante e destemida Ulrike; Goethe sonha, ilude-se e se desespera, “ele se transforma em um anão que pratica salto em altura”. O caminho do homem apaixonado agravado pelas limitações da idade provecta. As duras descobertas das ausências e silêncios do ser amado. “Admira-se que por causa dela/ o sol não se paralise”, chega a escrever em meio ao tormento passional. Isso, muito antes de compreender o mandamento zero, aquele que teria caído da tábua de Moisés na descida do Sinai: “Não deves amar.” 



Um homem apaixonado, Martin Walser, tem tradução de Renata Dias Mundt, e foi publicado no Brasil pela editora Planeta, em 2010. Comentário publicado originalmente na Verbo21.


quinta-feira, 4 de julho de 2013

CENA DE RUA (826)


Um cão caçava.
Metia o focinho por entre caixas e sacos.
Na barafunda da feira livre.
Um cão esfomeado caçava.
Nada aqui, um pontapé acolá... caçava.
Sumiu por um tempo entre as barracas.
Saiu adiante a trotar.
Levava pendurado nas presas um saco de lixo.
Devidamente cheio.
Sumiu por entre as barracas.
O feroz caçador.