domingo, 26 de junho de 2016

PROUSTIANAS 5



   [...] a beleza pode ser a mais nobre das assinaturas [...]

   [...] são as obras verdadeiramente belas, quando sinceramente ouvidas, que mais nos devem decepcionar, porque na coleção de nossas ideias não há nenhuma que corresponda a uma impressão individual.

   [...] a verdade não tem necessidade de ser dita para ser manifestada, e que podemos colhê-la mais seguramente sem esperar pelas palavras e até mesmo sem levá-las em conta, em mil sinais exteriores, mesmo em certos fenômenos invisíveis, análogos, no mundo dos caracteres, ao que são, na natureza física, as mudanças atmosféricas.

    Pretendem os poetas que tornamos a encontrar por um momento o que fomos outrora, quando entramos em certa casa, em certo jardim em que vivemos na juventude. São peregrinações muito arriscadas, essas, ao fim das quais se colhem tantas decepções como êxitos. Os lugares fixos, coevos de anos diferentes, é em nós mesmos que é melhor encontrá-los.

   E com efeito, passamos juntos quase toda a noite, conversando ante os nossos copos de sauternes que não esvaziávamos, separados, protegidos dos outros pelos véus magníficos de uma dessas simpatias entre homens que, quando não tem por base atrativos físicos, são as únicas verdadeiramente misteriosas.

   Cada um é homem da sua ideia; há muito menos ideias que homens, de modo que os homens de uma mesma ideia são iguais. Como uma ideia nada tem de material, os homens que só materialmente estão em torno do homem de uma ideia não o modificam em coisa alguma.

   Não se faz um atelier de pintura com qualquer sala, não se faz um campo de batalha com qualquer local. Há lugares predestinados.
   


 Extraídos do vol. 3 de "Em busca do tempo perdido", de Marcel Proust, "O caminho de Guermantes", com tradução de Mário Quintana, editora Globo, 1964.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

PROUSTIANAS 4



   [...] toda decadência aceita tem como resultado tornar as pessoas menos exigentes no tocante àqueles com quem se resignaram a conviver, menos exigentes quanto ao seu espírito como quanto ao resto. E se isso é verdade, devem os homens, como os povos, ver a própria cultura, e até mesmo a própria língua, desaparecer com a independência.

   Tornamo-nos morais quando somos infelizes.

   Sem dúvida, a coisa mais espalhada no mundo não é o senso-comum, como se costuma dizer, mas a bondade.

   [...] um artista, para entrar na plena verdade da vida espiritual, deve estar só e não prodigalizar o que é seu, nem sequer a seus discípulos [...]

   Tinha conversado com ela sem saber onde caíam minhas palavras e aonde iriam parar, como se tivesse lançado pedras num abismo sem fundo.

   Recordamos: vamos ao encontro de um pavão e damos com uma peônia.

   [...] aqueles poucos passos que ninguém mais podia deter, eu os dei com delícia, com prudência, como que mergulhado num elemento novo, como se, avançando, eu fosse lentamente deslocando felicidade, e ao mesmo tempo com um sentimento desconhecido de onipotência e de que entrava enfim na posse de uma herança que sempre me pertencera.

   Pois para sofrer verdadeiramente por uma mulher, cumpre haver acreditado completamente nela.
 
 

Extraídos de "À sombra das raparigas em flor", vol. 2 de "Em busca do tempo perdido", de Marcel Proust, tradução de Mário Quintana, editora Globo, Porto Alegre, 2a. edição, 1973.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

POEMA DO NOME


quando eu nasci, 
lá foi meu pai montado a cavalo
com um nome no bolso guardado
me incluir na saga dos desvalidos

como feito a mais de 150 mil outros meninos naquela década

em 1930 somamos uns 10 mil aos raros Carlos da terrinha
em 1940 acrescentou-se uma fornada de mais 50 mil
eu mal aprendera a caminhar em 1960 
e aquela jovem guarda despejava 270 mil Carlos no Brasil

nos anos 1970 a turma de Carlos se fez um pouco menor:
260 mil, por aí
nos 80 voltou-se ao arrebanhado nos 60
para despencar nossa produção a uns
200 mil na década seguinte
e adentrar o novo século, enfim,
numa reação espetacular,
juntando mais 260 mil Carlinhos 
aos que aqui pelejavam

e dizem que agora somos quase um milhão e meio de Carlos
identificados pelo IBGE
a respirar brasilidades

gostam mais de Carlos em São Paulo: 327 mil
no Rio de Janeiro fazemos sucesso: 190 mil
em Minas Gerais, terra do mais famoso Carlos, muito nos apreciam: 153 mil
para em seguida, vejam vocês, vir a Bahia: 98 mil

mas onde em proporção há mais Carlos, pasmem,
é entre os cariocas, sergipanos, maranhenses e capixabas,
o que significa absolutamente nada

e eu, que venho de longe sendo Carlos, a tudo isso desconhecia
na minha vã trapalhada em superar minha agonia 

mas sei que não importa o cantar da gia
nem ser o quinto em popularidade
nem quantos Carlos há nesta cidade
sigo a sina que me deram um dia;

jamais largar a oportunidade
de em tudo na vida fracassar




segunda-feira, 13 de junho de 2016

PROUSTIANAS 3



   [...] um belo livro é particular, imprevisível e não é feito da soma de todas as obras-primas precedentes, mas de alguma coisa que não se alcança com o haver assimilado perfeitamente essa soma, porque está precisamente fora dela.

   Mas eu não queria chegar apenas a seu corpo, e sim à pessoa que nele vivia, essa pessoa com quem parece entrarmos em contato quando chamamos a sua atenção, e em que julgamos penetrar quando lhe sugerimos uma ideia.

   Mais tarde, veem-se as coisas de modo mais prático, mais de acordo com o resto da sociedade, mas a adolescência é a única época em que se aprende alguma coisa.

   "Afinal de contas", pensava eu, "talvez o prazer que se teve em escrevê-la não seja o critério infalível do valor de uma bela página, talvez não passe de um estado acessório que muitas vezes se lhe vem juntar, mas cuja falta não pode incriminá-la. Talvez algumas obras-primas tenham sido compostas entre bocejos".

   O amor mais exclusivo por uma pessoa é sempre o amor de outra coisa.

   Se um pouco de sonho é perigoso, não é menos sonho que há de curá-lo, e sim mais sonho, todo o sonho. É preciso conhecer inteiramente os nossos sonhos para não mais sofrer com eles [...]

   E no momento em que surge o perigo, ainda que seja mortal e que me ache num estágio da vida inteiramente tranquila e feliz, se estou com outra pessoa, não posso deixar de colocá-lo a salvo e tomar para mim o lugar de perigo. 

   [...] um artista, para entrar na plena verdade da vida espiritual, deve estar só e não prodigalizar o que é seu, nem sequer a seus discípulos [...]



Extraídos de "À sombra das raparigas em flor", vol. 2 de "Em busca do tempo perdido", de Marcel Proust, tradução de Mário Quintana, editora Globo, Porto Alegre, 2a. edição, 1973.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

PROUSTIANAS 2


   É preciso que a obra [...] crie ela própria sua posteridade.

   [...] o que chama à vida as possibilidades ou dela as exclui não é forçosamente da competência do gênio; pode-se ter sido gênio e não haver acreditado no futuro dos caminhos de ferro ou dos aviões, como se pode ser grande psicólogo e não crer na falsidade de uma amante ou de um amigo, cujas traições poderiam ser previstas por gente mais medíocre.

   Só nas vidas realmente viciosas é que o problema moral se pode apresentar em toda a sua força de ansiedade. E a esse problema dá o artista uma solução, não no plano da sua vida individual, mas do que é para ele a sua verdadeira vida, uma solução geral, literária. Como os grandes doutores da Igreja começaram muita vez, sem deixar de ser bons, por conhecer os pecados de todos os homens, para disso tirar a sua santidade pessoal, muita vez os grandes artistas, embora maus, se servem de seus vícios para chegar à concepção da regra moral de todos.

   Três quartos do mal das pessoas inteligentes provêm da sua inteligência.

   [...] a nossa memória não nos apresenta habitualmente as recordações na ordem cronológica, mas como um reflexo onde está alterada a ordem das partes...

   No tocante às mulheres que não nos amam, como no caso dos "desaparecidos", saber que nada mais se tem que esperar não impede que continuemos a esperar.

   Elástico é o tempo de que dispomos cada dia; as paixões que sentimos o dilatam, as que inspiramos o encurtam e o hábito o enche.

   Não era a primeira vez que eu reconhecia que as criaturas que amam não são as mesmas criaturas que gozam.

 
Extraídos de "À sombra das raparigas em flor", vol. 2 de "Em busca do tempo perdido", de Marcel Proust, tradução de Mário Quintana, editora Globo, Porto Alegre, 2a. edição, 1973.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

PROUSTIANAS



   A esperança de ser aliviado lhe dá ânimo para sofrer.

   Mas nem mesmo com referência às mais insignificantes coisas da vida somos nós um todo materialmente constituído, idêntico para toda a gente e de que cada qual não tem mais do que tomar conhecimento, como se se tratasse de um livro de contas ou um testamento: a nossa personalidade social é uma criação do pensamento alheio.

   O que censuro nos jornais é fazer-nos prestar atenção todos os dias a coisas insignificantes, ao passo que lemos três ou quatro vezes na vida os livros em que há coisas essenciais.

   [...] assim agora todas as flores do nosso jardim e as do parque do sr. Swann, e as ninfeias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas moradias e a igreja e toda Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, da minha taça de chá.

   A meia altura de uma árvore indeterminada, um pássaro invisível empenhava-se em que fosse breve o dia, explorando com uma nota prolongada a solidão circundante, mas recebia desta uma réplica tão unânime, um contragolpe tão reduplicado de silêncio e imobilidade que dir-se-ia que ele acabava de parar para sempre o instante que procurava fazer passar mais depressa.

   Só há duas classes de criaturas: as magnânimas e as outras; e cheguei a uma idade em que é preciso tomar partido, decidir de uma vez por todas a quem se quer amar e a quem se quer desdenhar, apegar-se àqueles a quem a gente ama e não mais deixá-los até a morte, para resgatar o tempo perdido com os outros.

   Saber nem sempre permite evitar.

   A gente não conhece a própria felicidade. Nunca se é tão infeliz quanto se pensa.

   [...] a recordação de certa imagem não é senão saudade de certo instante; e as casas, os caminhos, as avenidas são fugitivos, infelizmente, como os anos.


Extraídos de "No caminho de Swann", vol. 1 de "Em busca do tempo perdido", de Marcel Proust, tradução de Mário Quintana, editora Globo/Porto Alegre, 2a edição, 1961