quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

O QUE FALTA


O que falta
na sua vida
em você

O que falta fazer

O que falta comprar,
pedir ou vender

O que falta acontecer

Um dia
um encontro
um ou mais tropeços
algo novo a conhecer

Um recomeço
ou despedida
um novo desfecho
uma nova saída

O que falta a você
a sua vida

um sinal como este: ?
ou talvez: !
ou quem sabe: ...

falta ciência,
faxina, musculação

tudo é só aparência

ainda falta escolher

o que falta em você
na sua vida

sábado, 13 de dezembro de 2014

Ê BALANCÊ BALANCÊ - 2014


Ainda vivo, até escrever estas.
Muitas e nem sempre boas.
Junto a minha filha, minha irmã, minha amada,
e o universo de cada uma,
arranjo mió que bom.
Nenhum livro publicado.
Um livro em revisão.
Um outro livro prestes.
Menos viagens que as desejadas.
Menos visitas que as possíveis.
Mais médicos que os necessários.
Bem mais leitura do que deveria.
Pouco dinheiro, óbvio.
Mas ainda vivo, até estas linhas.
Menos silêncio que o prometido.
Algumas perdas inevitáveis.
Alguns ganhos inesperados.
Uns e outras merecidos,
uns e outras, castigos.
Um conto na revista da Academia.
Uma participação na FLICH,
outra sobre Jorge Amado.
Estudantes afilhados em Seabra.
Amizades fortalecidas,
outras esmaecidas.
Mas ainda vivo, até aqui.
Uma honra inaudita em ser esquecido
pela oficialidade.
Uma honra inaudita em ser lembrado
por amigos e parentes.
Dias com minha madrinha,
outros com minha terra, minhas águas e
meus mortos.
Idas à Colônia Treze, a Lauro, 
a São Paulo, à Chapada, a Feira.
Outros lugares num mesmo lugar.
O mesmo homem renovado
e deliciosamente atormentado.
Um ano que vai, um que por certo virá,
e que talvez me levará até um outro
que adiante me aguarde.
Vivo, ainda, até este ponto.
E tudo sendo um misto quente
de realidade e ficção,
com uma bucha de sena no meio,
pronta pra arrebentar com a partida.
Apostas feitas, talheres nas mãos:
2015 tá na mesa.
(Ponto de seguimento).

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

IMAGENS CINTILANTES, CAMILLE PAGLIA




     A civilização é definida pelo direito e pela arte. As leis governam o nosso comportamento exterior, ao passo que a arte exprime a nossa alma. Às vezes, a arte glorifica o direito, como no Egito antigo; às vezes desafia a lei, como no Romantismo. O problema com as abordagens marxistas que hoje permeiam o mundo acadêmico (via pós-estruturalismo e Escola de Frankfurt) é que o marxismo nada enxerga além da sociedade. O marxismo carece de metafísica - isto é, de uma investigação da relação do homem com o universo, inclusive a natureza. O marxismo também carece de psicologia: crê que os seres humanos são motivados apenas por necessidades e desejos materiais. O marxismo não consegue dar conta das infinitas refrações da consciência, das aspirações e das conquistas humanas. Por não perceber a dimensão espiritual da vida, ele reduz reflexivamente a arte à ideologia, como se o objeto artístico não tivesse outro propósito ou significado além do econômico ou do político. Hoje ensinam aos estudantes a olhar a arte com ceticismo, por seus equívocos, suas parcialidades, omissões e ocultos jogos de poder. Admirar e honrar a arte, exceto quando transmite mensagens politicamente corretas, é considerado ingênuo e reacionário.



Trecho da introdução de "Imagens cintilantes - uma viagem através da arte desde o Egito a Star Wars", de Camille Paglia, editora Apicuri, Rio de Janeiro, 2014.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

ÂNGELO SOBRAL DESCE AOS INFERNOS, RUY ESPINHEIRA FILHO


Uma joia lapidada depois de três décadas de existência. 
A obra de Ruy Espinheira Filho não para de me surpreender: "Ângelo Sobral desce aos infernos" ressurge com vigor contemporâneo e sabor clássico. E cheiro bom de novidade.
Um romance breve que consegue abrigar vários mundos, personas e vidas distintas, tudo aprisionado em tensão na memória do protagonista/escritor.
Ângelo Sobral se vê só, repentinamente, viúvo. Ainda há fios que o prendem e o movimentam no território social: uma filha, netos, amigos, o milagre de um editor. E ainda há a literatura e suas possibilidades. 
Sobral, então, escreve. E o leitor o acompanha nessa pulsão de busca e configuração de seres e vivências, e de si mesmo, que o autor assim sintetiza: "Eles sou eu, eu sou eles, e somos cada um e todos os seres humanos, e somos singulares." 
Ontem mesmo Amadeu e Rosa foram notícia na mídia nacional: o amor envelhecido levado ao extremo desespero de vida e sonho que se esvaem abandonados e que escorregam à revelia para o horror das perdas.Tude e Cão possuem milhões de clones em cada esquina do subdesenvolvimento e, no entanto, luzem de forma única e inesquecível na narrativa. E Lara me levou até Iara Iavelberg a ler cartas de seu amado guerreiro, carregando no ventre um rebento fadado a um destino trágico antes mesmo de nascer. Esses e aqueles tempos que jamais passam em nós.
Ruy constrói neste romance mais um painel lírico-dramático da travessia turbulenta que todos nós fazemos ao existir sob o Sol. 
Ao refletir sobre essa jornada, Ângelo Sobral entrega com generosidade ao leitor o produto final de sua luta como homem, como criador preocupado com seus personagens, como artista que desce aos seus infernos e de lá retorna com o ramo de ouro: a literatura em sua grandeza. 
Uma obra de mestre, sem dúvida.



Ângelo Sobral desce aos infernos
Ruy Espinheira Filho
Giostri Editora/SP (www.giostrieditora.com.br)
Preço: R$ 32,00
À venda na Livraria Cultura, Salvador Shopping

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

OLHO MORTO AMARELO, BRUNO LIBERAL



     O livro de contos "Olho morto amarelo", de Bruno Liberal, foi o vencedor do I Prêmio Pernambucano de Literatura, em 2013. O autor é goiano de nascimento, estudou Economia na UEFS, em Feira de Santana, e mora e trabalha em Petrolina/PE. O concurso teve 191 obras inscritas nos gêneros romance, conto e poesia. Liberal explicou, em sua palestra na FLICH, em Lençóis, que seu livro venceu no segmento Sertão e foi o grande vencedor também no âmbito estadual. Este é o segundo livro do autor. O primeiro, também de contos, foi lançado em 2012, "Sobre o tempo". "Olho morto amarelo" foi publicado pela Companhia Editora de Pernambuco/CEPE. Abaixo um trecho de um dos seus contos.

CARO PEDRO

     Ela senta muito perto dele.
     Perto da cara dele.
     Pega em sua perna tranquilamente, porém com força.
     Olha-o com aqueles olhos enormes e verdes.
     Olhos imperativos.
     E pergunta com sua voz grossa, rouca: "O senhor quer uma chupada?"
     Ele fica afásico. Não sabe como se comportar.
     Ele, um senhor de setenta e quatro anos. Tomando normalmente seu café da tarde e lendo um livro, como fazia todos os dias naquela hora.
    A mulher sentada à sua frente é muito bonita. Usa uma maquiagem suave que realça seus enormes olhos verdes. Gulosos. Desses que encaram a morte para intimidá-la. Veste um shortinho jeans curto e uma blusa de seda vermelha. Nas unhas, uma coloração alaranjada, estranha. Era loira pintada. Dava para perceber nitidamente. Não parecia puta.
     "Não entendi, querida", responde depois de certo desconforto.
     "Uma chupada, meu tio. Bem gostosa."
     Provavelmente ele nunca imaginou que naquela idade receberia uma proposta dessas. Não estava acreditando no que a jovem dizia.
     Ele disse: "Quem não quer?"
     Ela ri mostrando um dente torto.
     "Eu sou velho", ele continua.
     "Estou vendo."
     "Não se importa?"
     "Já me importei mais. E então?"
     "Quanto custa?"
     "Cinquentinha", ela diz olhando para baixo. Perdendo sua confiança. Quase com vergonha.
     Ele ri mostrando que está mais à vontade.
     "Achei barato. Você não é... hã, você sabe..."
     "Traveco?"
     "Isso... é difícil distinguir hoje em dia..."
     "Todo mundo pergunta por causa da minha voz grossa. Não se preocupe."
     "Quantos você já fez hoje?"
     "Nenhum. Você vai ser o primeiro."
     "Está falando sério?"
     "Cinco."
     "Ah!"
     "Vai ou não vai?"
     "Não gosto que mintam pra mim."
     "Hum."
     "É que não gosto que mintam pra mim", repete.
     "O senhor vai querer ou não?"
     "Quero muito. Há vinte anos não recebo uma."

Tem muito mais dessa prosa ágil, contemporânea, destemida. Não li todos os contos, mas do que li, tenho apreciado bem o livro do Bruno Liberal. Adiante, comentarei aqui. Fica essa mostra, acima, para apreciação e estímulo para aquisição do livro.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

FLICH, TRECHO DA PALESTRA


"E por ter me atrevido a chegar a este ponto, vou buscar no prosador norte-americano que se tornou inglês, Henry James, um trechinho de "Os anos médios": "Trabalhamos no escuro - fazemos o que está ao nosso alcance - damos o que temos. Nossa dúvida é nossa paixão e nossa paixão é nosso ofício. O resto é a loucura da arte."

Trabalhamos no escuro. Fazemos o que está ao nosso alcance. Damos o que temos. Parece ser esse um conjunto primordial da atividade do escritor. O resto é a loucura da arte, o extrato em que é preciso atuar e alcançar como resultado. E para tanto, acredito eu, não deve ser suficiente ao escritor abrir o peito e despejar o que dele escorrer ou escapar, mas, sim, descer a nossas zonas mais sombrias, aos nossos infernos íntimos, em busca do ramo de ouro, para consagração de sua própria entrega à aventura da escrita, para a devida oferta a quem, por ventura ou desventura, vier a conhecer seu trabalho. Pois é fato que nossa dúvida é nossa paixão e nossa paixão, nosso ofício.

                                                 ****************

A mediação da mesa acabou sendo feita por Thiago Prado, poeta e professor da Uneb, pois o professor José Welton foi convocado a participar de uma outra mesa. A mesa também não contou com a participação do Emmanuel Mirdad que, por problemas incontornáveis de última hora, não pode comparecer.

Na plateia, marcaram presença uma parte dos alunos do Centro Educacional de Seabra, escola que agora me tem como padrinho literário. Mais tarde, no Café Literário, quando cometi o desastre de cantoriar a capela "A piaba e o tucunaré", entreguei aos alunos exemplares de meus livros, que serão estudados na escola. Uma visita minha está prevista para o final do ano ou começo do ano que vem, quando conversaremos sobre os livros e a literatura em geral. Um belo projeto da Uneb/Seabra, que encampei de imediato.

Tudo indica que a FLICH vai ficar no calendário de eventos culturais da Chapada Diamantina. Parabéns à professora Iranice e todos os que, com ela, idealizaram e organizaram a Festa Literária.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

A HORA TERNA DO CREPÚSCULO, RICHARD SEAVER



Na foto da capa do livro, Seaver é o cara de gola rulê, ao seu lado a esposa Jeanette, o barbudo é Allen Ginsberg, o velhinho sem chapéu, Jean Genet, e o de chapéu, William Burroughs. O flagrante foi feito numa daquelas caminhadas dos anos 1960. Uma bela escolha para a capa, que transmite bem o espírito da biografía desse editor norte-americano, responsável na Paris dos anos 1950 pela publicação de Samuel Beckett em inglês e, nos EUA dos anos 1960, pela publicação de Jean Genet, Burroughs, Borges, Henry Miller, muitos deles autores até então proibidos.

"Reconhecíamos que a publicação de livros é, por sua própria natureza, uma atividade de improvisação, onde devem reinar o faro e a intuição." Não precisa mais que isso para deixar claro que os tempos mudaram e os editores mais ainda. "Se sobrevivêssemos e pagássemos nossas contas e com sorte fizéssemos o certo pelos autores fiéis e antigos de nosso catálogo e apresentássemos novas vozes ao mundo, isso era bastante", resumiu Seaver.

A aventura de Seaver no mundo da tradução, edição e publicação de livros começou em Paris, no pós-guerra, quando ganhou bolsa para desenvolver sua tese sobre a obra de James Joyce. Com amigos, criou a revista Merlin, publicando literatura e ensaios em língua inglesa, para atender um público anglófilo cada vez maior na Europa em restauração. Ao descobrir Beckett, Seaver reconhece nele um autor mais importante que Joyce e se dedica a traduzir seus livros e publicá-los, e a acolher os novos autores que traziam à cena cultural novas linguagens e abordagens, os contestadores, por assim dizer.

Voltando aos EUA, continua seu trabalho de tradutor e editor, publicando autores estrangeiros cujos livros eram barrados na alfândega e enfrentando, por isso mesmo, batalhas judiciais espetaculares. Beckett, Genet, Burroughs, Miller, Ionesco, Octavio Paz, Cioran e muitos outros. Uma vida dedicada aos livros e ao enfrentamento da mentalidade vitoriana ainda presente na sociedade norte-americana, a revelar novos autores, a viver intensamente o seu trabalho. 


A hora terna do crepúsculo - Paris nos anos 1950, Nova York nos anos 1960: memórias da era de ouro da publicação de livros, de Richard Seaver, tradução de Cid Knipel, Biblioteca Azul, Editora Glogo, 2013.
Imagem da capa capturada no Bol Fotos.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

FLICH - FESTA LITERÁRIA INTERNACIONAL DA CHAPADA DIAMANTINA



Sábado à tarde, dia 06.09, estarei ao lado dos escritores Emmanuel Mirdad e Bruno Liberal, participando de uma das mesas da FLICH - Festa Literária Internacional da Chapada Diamantina, em Lençóis. A mesa será mediada pelo prof. José Welton Santos Jr. e terá como tema "Cartografias da Literatura".

Na manhã do mesmo dia, Mônica participará de uma outra mesa, que terá como tema "Literatura, infância e subjetividade". 

A FLICH nasce com o propósito de acontecer anualmente, sob responsabilidade da Uneb, Ecoviva e Prefeitura de Lençóis. O evento abriga ações nas áreas de literatura, educação e cultura. Além das mesas de debate, acontecerão oficinas, shows, saraus, palestras, rodas de diálogo com escritores, lançamentos de livros e manifestações culturais. 

Vejam a programação e mais informações sobre a FLICH no endereço: www.flich.uneb.br.





domingo, 24 de agosto de 2014

A PIADA INFINITA, DAVID FOSTER WALLACE


Um romance de 1.198 páginas, sendo 96 delas de notas. Notas que ampliam, aprofundam, iluminam, desdobram e brincam com passagens do romance. Um romance considerado por críticos como inclassificável. Um romance de vanguarda, futurista, pós-scifi, que importa... 

A família Incandenza movimenta o enredo: o pai, cientista e cineasta; a mãe, linguista e reitora de uma complexa escola de formação de tenistas; Orin, filho mais velho, ex-tenista de futuro, atual chutador numa equipe de futebol americano; Mário, o do meio, deficiente muito especial, cinegrafista em tempo integral; e o mais novo, Hal, gênio drogadito, aluno da escola de tênis, em estado depressivo aos 17 anos. Junte a eles uma garota inefável, de beleza suprema coberta por um véu, que estrela filmes do pai e namora um dos filhos. Um desses filmes torna-se objeto de terrorismo por hipnotizar quem o assiste, a um ponto de provocar letargia mortal. Um filme assassino, que leva serviços secretos e, em especial, uma falange canadense de matadores em cadeiras de rodas a um jogo de dissimulações, propaganda e muito sangue derramado. Ouve-se o rangido das rodinhas...

E há uma nova América do Norte, composta por USA, Canadá e México, sob o comando do primeiro, claro, presidida por um ex-crooner de banda de cassino. Ventiladores sopram poeira tóxica para a Grande Concavidade, onde antes fora um dos estados sulistas. “E tudo parece áspero, espinhoso e aborrecido, como se cada som ouvido ganhasse subitamente dentes.” E mais: há um novo tempo, que serve para capitular o romance, agora patrocinado anualmente por uma grande empresa, que impõe seu nome a cada virada de calendário. Colado à escola de tênis, há um centro de recuperação de drogados, e isso não é gratuito.

A imaginação de DFWallace parece infindável neste romance. Seu conhecimento científico, espantoso. Impressionante a descrição minuciosa de tudo, ou praticamente tudo, que encorpa o cotidiano de seus personagens (tipos de drogas, medicamentos e tratamentos, variações de uma partida de tênis, uma filmografia completa e fichada, um complexo, e bote complexo nisso, war game desenvolvido e praticado pelos alunos da escola de tênis, o Eschaton, que pode durar horas, e... basta).

Dá certo desespero ler A piada infinita, não por sua extensão, que chega a ser prazerosa, mas pela crueza da realidade que o jorro de talento criativo do Autor engendra. Lembra a “inviabilidade da raça humana” martelada pelo protagonista de “A queda”, de Michel Laub, comentado aqui na edição passada. Chega-se a desejar que o Entretenimento encontre sua solução final no tal filme mortífero..

A tradução portuguesa perturba um pouco a leitura. Topar com adolescentes norte-americanos a dizer: “Estás a ver?” “Sou um inepto do caraças.” “Vós pareceis querer que nós morramos.”, leva um leitor brasileiro, no caso eu, a desentendimentos momentâneos e a distrações com o texto e com sua verossimilhança. No entanto, aquele que ama literatura e o romance, em especial, deve ter A piada infinita como leitura necessária e, para alguns, obrigatória.

DFWallace suicidou-se em 2008, aos 46 anos de idade.


A PIADA INFINITA, David Foster Wallace, trad. de Salvato Telles de Menezes e Vasco Teles de Menezes, Quetzal Editores, Lisboa, Portugal, 2012.
O comentário acima foi escrito para ser publicado na coluna "Crítica Rasteira", da revista eletrônica Verbo21 que, infelizmente, não está mais sendo atualizada. Uma pena, uma perda significativa para a literatura baiana e brasileira. Desta forma, publico-o aqui, meses depois de lido o livro e mal escrito essas linhas.
Andei lendo por aí que uma tradução brasileira está sendo preparada por Caetano Galindo e deverá ser publicada em breve. Ou seja, terei que ir às compras.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

A VERDADE SOBRE O CASO HARRY QUEBERT, JOËL DICKER


Um livro impressionante, impossível negar.
Romance policial, livro de suspense, história de amor, relato de uma grande amizade.
Diário de uma investigação criminal.
Uma história de escritores, lições de labor literário, metaliteratura.
Romance de romances vividos e escritos.
Narrativa fragmentada, epistolar, não linear, por vários autores.
Uma demonstração de como a literatura pode ser perigosa. Para quem escreve, para quem convive com quem escreve, para quem lê.
O mundo pérfido do business livresco: convivência e retroalimentação de paixão, ódio e cinismo, arte e money.
Reviravoltas na trama, surpresas constantes, um show de imaginação.
Um autor de 29 anos.
Um quadro de Hopper na capa.
A sangue frio, O corcunda de Notre Dame, Twin Peaks, Atos de amor.
Dizem que depois desse livro a literatura contemporânea não será mais a mesma. Não é pra tanto. Mas fiquei dois dias grudado na leitura. 
O Corriere della Sera concedeu-lhe "summa cum laudem"; o Le Matin disse ser "magistralmente construído"; o El País taxou: "melhor livro do ano"; e o The Guardian, "um hino para a imaginação ilimitada". 
Um livro admirável, não há como negar.


A verdade sobre o caso Harry Quebert, Joël Dicker, tradução de André Teles, Intrínseca, 2014, 576 páginas.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

O PROFESSOR, CRISTOVÃO TEZZA


O sentido da vida merece descoberta? A que vida, das muitas que impulsionamos, atribuir sentido? Uma família e suas múltiplas máscaras rendem boas histórias, se conduzidas por quem conhece o riscado. Não precisa ser uma grande família, à moda dos Buendía, pai, mãe e filho já formam um triângulo mais que intenso e agudo. As pessoas que tangenciam o triângulo, ou a ele se acoplam temporariamente, acabam por experimentar dessa intensidade e de suas arestas. 

Cristovão Tezza demonstra, em seu mais recente romance, possuir a habilidade dos grandes prosadores na moldagem de personagens interessantes e de narrativas que exploram as profundezas d'alma e as possibilidades do desejo e da inação. O ser humano a se ver e a se interrogar face ao que fez e ao que lhe fizeram, em preparo de angústias e de gestos extremos.

A ação de "O professor" transcorre de forma concentrada: do momento em que o protagonista acorda até o instante em que conclui sua arrumação para receber justa homenagem na universidade onde era catedrático. Algumas poucas horas de arrumação. Ocupa espaço limitado ao quarto, banheiro e sala de refeições.

Ocorre que a tal arrumação dá-se para além das abluções matinais, café da manhã e nó de gravata, trivialidades cotidianas, coisas de superfícies, mas na mais sombria profundidade da existência do professor Heliseu, linguista de cepa. É um chacoalhar de vidas.

Um mergulho na memória, o repassar de atos cruciais que o arrastaram até aquele precioso e temido momento. Um caminho marcado, também, pela investigação da linguagem. Tropeços, indecisões, incompreensões, desvios, surpresas diversas, perturbações de espírito, o sexo como fio condutor. O sexo tardio, mas provedor de delícias e confusões. A mulher o trai e o abandona, depois de também ser traída, o filho se rebela e escapa para outra vida, o trabalho finda com a aposentadoria.

O professor está só. Há uma morte antiga que o habita; outra morte mais recente o espicaça. O filho distante encarna o inimigo em seus piores pesadelos. E é esse o homem que se arruma para ser homenageado pelos colegas.  

Eheh, não só as consoantes intervocálicas foram elididas para tudo dar no que deu, eheh.


O professor, de Cristovão Tezza, Record, 2014

sábado, 19 de julho de 2014

JOÃO UBALDO RIBEIRO


Foi ontem, foi hoje, jamais deixará de ser.

Ali está a fieira de livros. Conto 11, daqui. Estou neles, sempre estarei. A narrativa prenhe de verdade, nascida do que mais importa da vida do nosso povo, da nossa história privada, até daquela que se diz pública, lavada em suor, sangue e muito forrobodó. Coisa boa de ler, sempre.

O primeiro, há tanto tempo, os arroubos do sargento, sua odisseia sertaneja, sua obstinação, tão minha conhecida de outro-mesmo sertão. O último, um voo de albatroz, tão estranho ao sertão quanto natural aos da costa e mar. Leituras que se acumularam, os amores de Benedita, as artes, os feitiços, maratona de delícias. E assim ficamos, nós, os que ainda sofrem.

A literatura não perde, já ganhou desde o início. Perdem a lucidez, o brilho da inteligência e da criatividade, a cultura brasileira. Não o conheci pessoalmente, mas o conheci de verdade. Grande João.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

A LITERATURA E SEUS AGENTES


Esteve em Salvador, faz um tempo, uma agente literária que, em palestra, admitiu a busca dos editores, e do mercado editorial, por escritoras jovens.

Sim, o critério principal deixou de ser o valor literário dos originais e passou a ser a pessoa que escreve: mulher e jovem, segundo o que ouvimos.

Agora, leio em um texto produzido por outra agente literária que os editores valorizam as relações que o autor tenha no meio literário e entre os críticos universitários para publicá-los.

Parece claro, então, que, além de ser mulher e jovem, é preciso ter boas relações no meio para despertar o interesse para o que se escreve. Isso explica a publicação de livros de autores homens não tão jovens.

Tempos atrás, o fato de se morar fora do eixo Rio-São Paulo era o entrave principal para a publicação de livros de ficção.

Tive meu primeiro romance publicado, em setembro de 2002, oito meses depois de enviar os originais pelos Correios, a partir de uma pequena cidade do interior da Bahia, para uma editora do Rio de Janeiro, onde não conhecia pessoa alguma. Oito anos depois, a mesma editora publicaria meu segundo romance. Talvez por cometer esse equívoco a editora tenha fechado as portas.

Hoje, não tenho o menor ânimo para enviar originais a uma editora do sudeste.

O óbito da literatura tem sido anunciado com frequência por seus principais agentes. 

No meu caso, talvez eu tenha morrido para essa tal literatura.

domingo, 23 de março de 2014

O DIA MAIS IMPORTANTE


Não há dia mais importante para minha filha que o do seu aniversário.
Mal se recupera das emoções da festa, ela já projeta a festa seguinte.
A deste ano terá como tema "Carrossel". No final do ano passado brilhou no evento anual da escola de música cantando a música tema do programa (vejam "Maíra canta Carrossel" no YouTube).
Amanhã será o dia do seu... lembrei-me dela dizendo que não se fala a idade de uma moça.
Mas cantaremos parabéns, ela soprará velas, provaremos do bolo. Lá em Feira de Santana.
Estaremos ao lado dela no seu dia mais importante. 
Levaremos presentes e o compromisso de que tudo faremos para que seu dia mais importante se repita sempre em amorosas festas.
Sorrir com ela, ser feliz com ela, ouvir suas surpreendentes frases, viver ao seu lado o máximo de emoções, mais que um propósito de pai tornou-se uma necessidade, uma fonte a despejar em minha boca vontade de viver.

sexta-feira, 14 de março de 2014

O RETRATO, LIMA TRINDADE, LANÇAMENTO



A editora P55 lança dia 18 de março, próxima terça-feira, a partir das 19 horas, na Confraria do França (antigo Ex-Tudo), Rua Lydio Mesquita, 43, Rio Vermelho, novo livro do escritor e editor Lima Trindade, "O retrato", pela coleção Cartas Bahianas.

Lima Trindade é autor da novela Supermercado da Solidão (LGE, 2005), dos livros de contos Todo Sol mais o Espírito Santo (Ateliê Editorial, 2005) e Corações Blues e Serpentinas (Arte Pau Brasil, 2007). Participou de diversas antologias de contos, entre elas Tempo bom, (Iluminuras, 2010), Geração Zero Zero (Língua Geral, 2011) e 82: uma copa, quinze histórias (Casarão do Verbo, 2013). É editor da revista eletrônica Verbo21 (www.verbo21.com.br). 

O retrato ou Um pouco de Henry James não faz mal a ninguém é um conto que transita em diversas tradições do gênero: relato de viagem, história de amor, realismo mágico e crônica de costumes. Com exímio domínio formal, o autor costura fatos históricos e ficção num enredo extremamente sedutor, ampliando o potencial suspense da narrativa e provocando o leitor a seguir por caminhos não imaginados.

Na ocasião, também será lançado o livro Minha cabeça não comporta tantos antigamentes, de Ludmila Rodrigues. "Minha cabeça..." poderia ser um roteiro de Sofia Coppola ou uma canção de Dolores Duran. No entanto, Ludmila faz uso de versos ágeis para elencar uma série de imagens delicadas e fugazes, como quem leu Drummond com atenção e se aproximou de Florbela Espanca e Ana Cristina Cesar com os olhos de hoje. Às vezes, melancólicos, é verdade, mas carregados de obstinada urgência.

:: SERVIÇO ::
Preço de cada exemplar: R$ 15,00.
(Na noite de lançamento, o preço da “compra casada” dos dois títulos será de R$ 25,00)

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

SALVADOR, ZONA AZUL XIII


Faz mais de duas semanas que a água que é entregue pela Embasa na Pituba fede mais que boca de lobo. Não a do bicho, mas essa das ruas, do sistema de esgotamento pluvial.
Deu no jornal e tudo, mas a empresa disse que o problema havia sido corrigido, ou coisa assim. Não explicou, que eu tenha lido, a causa da fedentina, e garantiu o que não é verdade.
A água na Pituba continua a cheirar mal, feito consciência corrompida.
Beber não dá. 
O banho, se não fosse um Alma de Flores baunilha, pioraria mais ainda a situação.
Soube que a água do Stiep parece estar mais podre que a da Pituba. 
Aqui em casa, o custo da água mineral diária passa dos oito reais.
Quem vai me ressarcir? E a todos desses bairros?
Ora, ressarcir... Isso é Salvador.
Já o carnaval está limpo, mar de cervejas, tormentas decibélicas, muita grana pra agradar turista.
E a água da Pituba passarinho não bebe nem a pau.
Se eu morrer, já sabem.


domingo, 16 de fevereiro de 2014

SALVADOR, ZONA AZUL XII


1. O verdadeiro teste da nova av. Paulo VI se deu com a volta às aulas. Claro que eu me esqueci desse detalhe e fui de carro comprar comida às 12:30h. São 200m pra ir, outros tantos pra voltar. Retornei com as marmitas, pontualmente, às 13:35h. 

1.1 Óbvio que nas vezes seguintes, fui a pé, enfiando minha bengala nos buracos da calçada e respirando os buenos aires do Canal. 

1.3 Ao topar com um preposto da companhia de trânsito, que tentava na base do apito, dar jeito no impossível, não resisti: mandei meus parabéns aos trêfegos engenheiros de tráfego de nossa cidade, que, por certo, jamais serão entregues.

2. Gavião vingador, quero tuas asas, quero teu curvo bico e tuas garras impiedosas. Quero, como tu, expulsar os invasores do meu terreiro. Como tu, derrubar do andaime quem ousa quebrar o cristal do silêncio, empatar a visão do mar, impedir o acesso ao verde. 

2.1 Gavião vingador, sempre atento, do alto da árvore, mostrar à corja invasora que ainda há quem lute por espaço, por paz, por beleza.

2.2 Gavião vingador, símbolo da Resistência.  

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

VERÃO


Vivo na Bahia, mas não vivo a Bahia.

Sou o derrotado.

Ninguém se importa mais com meus despojos.

Poucos sabem, mas sou da Resistência.

Nem mesmo a Resistência sabe que é.

Perder a memória dos cacos, ter o objeto quebrado em mente.

Provar diariamente a dor periférica, a que não mata mas aleija.

O que decidem por aí não me afeta, eu fui.

O verão não me representa, embora prefira o calor.

Podem me recadastrar à vontade, não largo o livro.

Vivo na Bahia, mas a Bahia não vivo.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

LIVRO DO DESASSOSSEGO, FERNANDO PESSOA


Alguns desassossegos do Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, alguém que apenas Fernando Pessoa conheceu:

1. O coração, se pudesse pensar, pararia.

2. Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo.

3. No meu coração há uma paz de angústia, e o meu sossego é feito de resignação.

4. Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou.

5. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende.

6. Nós nunca nos realizamos. Somos dois abismos - um poço fitando o Céu.

7. O único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios.


Tudo isso em apenas poucas páginas desse livro portentoso. De vez em quando, precisamos entrar em estado de desassossego.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O MAL DE MONTANO, ENRIQUE VILA-MATAS


[...] A literatura, disse-me, está sendo acossada, como nunca o tinha visto até agora, pelo mal de Montano, que é uma perigosa doença de mapa geográfico bastante complexo, pois é composta das mais diversas e variadas províncias ou zonas maléficas; uma delas, a mais visível e, talvez, a mais populosa, em todo caso a mais mundana e a mais estúpida, acossa a literatura desde os dias em que escrever romances se converteu no esporte favorito de um número quase infinito de pessoas; dificilmente um diletante se põe a construir edifícios ou, logo de saída, fabrica bicicletas sem ter adquirido uma competência específica: sucede, ao contrário, que todo mundo, exatamente todo o mundo, sente-se capaz de escrever um romance sem nem sequer ter aprendido os instrumentos mais rudimentares do ofício, e sucede também que o vertiginoso aumentos desses escrevinhadores terminou por prejudicar gravemente os leitores, afundados hoje em dia numa notável confusão.


Estou às voltas com "O mal de Montano", do Enrique Vila-Matas. Sempre uma boa aula. Adiante voltarei ao livro aqui no blog.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

EMERGÊNCIA, MÁRIO QUINTANA


Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
- para que possas profundamente respirar.

Quem faz um poema salva um afogado.


Nada dizer mais. Um poema de Quintana salva vidas, todo dia. Aqui fica esse para emergências.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

A MENINA COM A LAGARTIXA, BERNARD SCHLINK

a-menina-com-a-lagartixa-277.jpg (180×274)



     
A menina vestia uma saia vermelho-escura e, sobre uma blusa amarelo-clara, uma peça amarelo-escura, semelhante a um corpete atado folgadamente às costas. Grande parte de sua roupa e de seu corpo estava oculta pelo rochedo sobre o qual a menina deitava seus braços pequenos e arredondados e apoiava seu queixo. Ela poderia ter uns oito anos. O rosto era um rosto de criança. Mas o olhar, os lábios cheios, os cabelos que se encaracolavam à testa, caindo sobre as costas e os ombros, não eram infantis, mas sim femininos. A sombra que os cabelos jogavam sobre as bochechas e as têmporas era um mistério, e a escuridão da manga afofada, dentro da qual sumia o braço nu, uma tentação. O mar, que se estendia atrás do rochedo e de uma faixa estreita de areia até o horizonte, lançava ondas pesadas à praia, e através das nuvens escuras a luz do sol irrompia fazendo com que uma parte do mar brilhasse e o rosto e os braços da menina resplandecessem. A natureza transpirava paixão.


     O parágrafo acima descreve o quadro que dá título a essa novela de Bernard Schlink, publicada isoladamente aqui no Brasil pela Record, em 2010, com tradução de Marcelo Backes. Originalmente, "A menina com a lagartixa" integrou o livro de narrativas curtas intitulado "Liebesfluchten", que saiu na Alemanha em 2000, de onde foi extraída também a novela "O outro".
     A novela "A menina com a lagartixa" traz a relação amorosa de um garoto com um quadro, ou com a menina do quadro, descrita acima. Desde cedo, o garoto aprecia o quadro no escritório do pai, um juiz de direito que depois se torna vendedor de seguros e alcoólatra. Com a morte do pai, o agora estudante de Direito herda o quadro, que assume lugar na parede acima da cama em seu quarto. A existência do quadro é cercada de mistério quanto a seu autor e sua origem na família. Em busca de respostas, o protagonista mergulha no passado de sua família próxima e nos horrores da Segunda Guerra. 
     Schlink conduz a narrativa com leveza. Mas nada pode ser leve em almas presas a mistérios. Passo a passo, a paixão que o quadro transpira toma conta do estudante, que o esconde das visitas, que conversa com ele, ou com ela, a menina. O tipo de paixão que leva a desastres. Uma leitura prazerosa e enriquecedora, que recomendo.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

BEBÊS DE "AMOR À VIDA"


Tudo começou com Paulinha: nasceu num banheiro sujo de bar para ser jogada numa caçamba de lixo.Mais tarde, foi sequestrada, levada para o Peru, onde quase foi atirada de um penhasco. Cresceu, ficou bem.

Depois, outros vieram:

1) a Palhacinha, Mary Jane, vive aos cuidados da avó materna, vendedora de hot-dog que não tem empregada doméstica, e fica na casa da avó paterna, vez em quando. As duas avós trabalham e namoram muito. O pai, raramente, aparece; a mãe, agora ex-BBB, ignora a filha. Quem cuida dessa criança nas inúmeras horas de necessidade?

2) o Fabrício, nascido de barriga de aluguel, tornou-se pivô de um conflito entre a mãe e os pais. Levado pra cá, arrastado dali, sequestrado (raptado, na linguagem da novela), ouve gritos, sofre apertões, toma banho de lágrimas. Esse, pelo menos, é cuidado por uma babá e recebe amor e carinho de um dos pais. Mas tem sofrido, a criaturinha;

3) e há o filho da Aline com o dr. César. Odiado pela mãe, vive largado em meio à porcaria, ouve sussurros pavorosos da mãezinha, sofre maus-tratos, já ficou desnutrido. De vez em quando, alguém vai cuidar dele, mas se dá mal por causa disso.

Alguém ali odeia bebês.

domingo, 19 de janeiro de 2014

SALVADOR, ZONA AZUL (XI)


Verão. Queixas quanto ao desempenho do ar-condicionado do carro.
Na concessionária:
- Não tá dando conta. Meio-dia, na posição 4, é mesmo que nada.
Verificaram. E o diagnóstico: vazamento do gás.
- Não podemos fazer o conserto aqui, pois o aparelho foi instalado, não veio de fábrica.
Fiquei sabendo disso ali, dois anos depois de comprar o carro na mesma concessionária.
Levei o automóvel, então, para a empresa especializada em refrigeração de carros que teria instalado o aparelho.
- Disseram na concessionária que é vazamento, trocar a válvula, essas coisas.
Verificaram. Veio o diagnóstico:
- Esse pessoal de concessionária... Tem vazamento nenhum, o gás tá no topo. O problema é elétrico, o compressor não tá entrando.
Frio no corpo inteiro. Fiquei esperando o orçamento, em casa, pra não correr o risco de morrer na rua.
Toca o telefone:
- Localizamos o problema elétrico, tá consertado, fiação solta.
- Maravilha!, grito eu de cá.
- Mas tô vendo aqui que o pessoal da concessionária disse que havia vazamento...
- Sim, mas vocês mesmos disseram que não havia vazamento...
- É bom trocar a válvula, pode tá vazando... O pessoal da concessionária...
- Não entendo, vocês disseram...
- Olha,doutor, nesse calor..Eu vi aqui um vazamentinho, pouca coisa, mas tem. O aparelho estava com problema, não é? A concessionária disse que tava vazando, então é melhor trocar a válvula, repor o gás...
- E vai ficar por quanto, isso?
- Ah, são 300 reais, mas eu deixo por 250.
Verão. Queixas quanto ao desempenho do ar-condicionado. Inclusive, minhas. Chimbei nos 250.
Dormi mal. Fui buscar o carro, no outro dia, contrariado. Sensação brutal de ter sido assaltado.
Salvador, zona azulíssima.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

SALVADOR, ZONA AZUL (X)


Não, não vou falar do acarajé a R$8,50 na praia. Nem da cerveja a 8 reais, mesmo preço do litro de umbu. Tenho provado bons umbus de 2 reais o litro, trazidos lá de Cosme de Farias que, obviamente, não fica na Zona Azul de Salvador.

O fato é que precisei inverter a porta de minha geladeira. 
- Vocês fazem o serviço?
- Sim, fazemos. 
- Então...
- Vou agendar uma visita do técnico. São 30 reais a visita.
- Bem, eu preciso do serviço. Ele pode vir pronto pra fazer o serviço?
- Claro. Vai sair por 80 reais.
- Mais os 30 da visita?!
- Não, os 30 reais da visita são descontados.
- Certo. Manda o técnico vir, então. Mas, veja bem, marque pela manhã, somente pela manhã.
- Segunda-feira, pela manhã, o técnico estará aí.
Claro que o técnico não veio segunda pela manhã. Veio à tarde. E eu não estava. Telefonei novamente, novo agendamento. Pela manhã bem frisado.
Na quarta-feira o técnico veio novamente à tarde. Eu não estava em casa, pois sim.
Novo telefonema, novo agendamento, nova visita... à tarde.
Imaginem o tom de voz na ligação seguinte. PELA MANHÃ, PELA MANHÃ!
Chegou sexta-feira, a manhã passou, o técnico não apareceu. 
Por um daqueles desvios de rota, voltei pra casa depois do almoço. E adivinhem quem apareceu? Bingo!

Nem vou incomodar vocês com os detalhes hitchcokianos da inversão da porta. Direi apenas que o serviço foi feito. À tarde. Como bem quis o tal técnico.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

RENASCIMENTOS



O escritor Mayrant Gallo escreveu, em seu blog "Não Leia", o post "Desparecimentos", motivado por um texto apócrifo que rola na web, tratando de coisas que desaparecerão de nossas vidas; texto que, por sarro, encaminhei a alguns amigos.

Mas ai me veio a vontade de listar o contraponto ao texto anônimo: as nove coisas que renascerão em nossas vidas. Por sarro, óbvio. E por estar de saco cheio de oficinas mecânicas, onde perdi o dia de hoje e perderei o de amanhã.

1. Moleque de recados (pra quando os Correios fecharem as portas)
2. Bilhetinhos (pra quando toda tecnologia emudecer, cair, perder o sinal, por falta de energia elétrica)
3. Disco de vinil (ah, este continua vivíssimo aqui em casa, mas renasce alhures; faltando energia, ressuscitaremos a manivela)
4. Túneis caseiros (pra fugir do cerco que os bandidos fatalmente farão às casas)
5. Carroça (pra quando o petróleo acabar ou o litro de gasolina alcançar mil reais)
6. Sarau e Serenata (com o fim da música gravada, voltaremos a cantar em grupo para alguém ou para nós mesmos)
7. Guilhotina (está voltando ao uso no Maranhão; aguarda-se a vez do uso original)
8. Intimidade (atividade de resistência exercida por pessoas que amam e se amam)
9. Amor (sentimento preservado por algumas pessoas em favor da condição humana)

Na verdade, tudo acaba e tudo renasce, sob diversas formas, em algum lugar, em alguma pessoa. E toda lista não ultrapassa a condição de bobagem, como a carta de amor.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

SONHOS DE TREM, DENIS JOHNSON


Um dos protagonistas mais interessantes que conheci: Robert Grainier, o que se omite ou o que não se importa. Quando criança, foi despachado para a família de um tio e jamais se preocupou em perguntar quem eram ou foram seus pais. Quando rapaz, topou na mata com um moribundo que lhe passou informações sobre os motivos e o sujeito que o “matara”, e voltou a pescar sem nada contar depois ao xerife. E assim pela vida afora, incluindo suas mulher e filha desaparecidas em um incêndio florestal – passado o choque inicial, montou acampamento na margem de um rio e ficou por ali meses a pescar. 
A vida de Grainier possuía o limite dos seus braços e passos. Um homem a cortar madeira, fincar dormentes em estradas de ferro, estender pontes sobre abismos e a sonhar com trens, sempre de volta à cabana na floresta, onde também aprendeu a uivar em noites quentes. E nem mesmo seu encontro com a menina-lobo, que assombrava os moradores da montanha, e a absurda verdade que se desvenda a seus olhos, move-o para além dos limites do seu terreiro, por onde elas (a menina-lobo e a verdade que lhe segue de arrasto) escapam mais tarde. Somente a pulcritude de Miss Galveston, a atriz do ousado filme “Pecados de amor” o perturba, o empurra para longe da tela, a tal  pulcritude. Delicioso romance curto desse autor nascido na Alemanha, filho de pais americanos, que teve publicados pela mesma editora os romances “Ninguém se mexe” e “Árvore de fumaça”. 

Sonhos de trem, de Denis Johnson (trad. Alexandre Barbosa de Souza| Cia das Letras, 2012, publicado originalmente na revista eletrônica Verbo21 (www.verbo21.com.br)..

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

DIÁRIO DA QUEDA, MICHEL LAUB

A questão judaica exposta de maneira surpreendente por um judeu brasileiro. Avô, pai e o neto que narra o ser judeu em terras brasílicas. E as inevitáveis perguntas existenciais. Lembra Philip Roth no destemor do enfrentamento familiar. Mas como se fosse um canivete afiado, não uma metralhadora de mil tiros. Laub concentra sua narrativa em um momento crucial da adolescência do protagonista: no aniversário do único estudante gói da escola, seu grupo de estudantes judeus deixa cair no chão o aniversariante, depois de jogá-lo pra cima repetidas vezes num simulacro de ritual, o que quase aleija o rapaz. Mais tarde, o narrador será o único judeu em uma escola gói e enfrentará as conseqüências por sua escolha. Inversão de algozes, remorso, purga, e uma amizade surgida sobre tais alicerces. 
Narrativa fragmentada, um esforço de memória que eclode num momento crucial do protagonista adulto, uma demonstração de técnica e linguagem apuradas. O gesto de hoje deflagra uma lembrança de anteontem (madeleines), as decisões de hoje podem ter como base um acerto com o passado – tudo está conectado (passado, presente e futuro desejado), nada se faz gratuito. Inexorável viver, inevitável queda, possível reerguer: o avô no neto, enfim. 

Diário da queda, Michel Laub, Cia das Letras, 2011, publicado originalmente na revista eletrônica Verbo21 (www.verbo21.com.br), na seção Crítica Rasteira.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

SANTO REIS


Assim, Santo Reis, singular e plural.

Cresci ouvindo noite adentro o batuque do reisado de Mestre Biscoito. E acompanhando, sempre que possível, a bandeira de Reis em visita às casas. Em algumas, o reisado alongava a cantoria entre comes e bebes. Ritmo hipnótico, fascinante o sapateado e o rodopio das mulheres dentro do círculo. 

As chulas de louvação e de saudação aos donos da casa não me interessavam muito, gostava mesmo - e ainda gosto demais - era daquelas improvisadas sobre temas do cotidiano da comunidade.

"Foi s'imbora da ilha Grande / Cantador mais Chinchinha / Mudaram pro Poço do Mel / Pensando que ia enricar / Mas o Deus daqui / É o mesmo Deus de lá."

"Eu bem falei pra Zequinha / Que botasse roça no centro / Pois roça em beira de estrada / Não amadurece mantimento / Se um ladrão passa fora / Quatro, cinco, passa dentro."

Essas chulas, e outras igualmente belas, são sempre cantadas pela rapaziada de Ibotirama, em qualquer cantoria de bar ou em volta de churrasqueira. Gostaria de saber mais delas, suas letras inteiras, sempre modificadas ou ampliadas pelos cantadores. São letras que expõem a vitalidade criadora do homem simples e uma beleza, uma sabedoria, que dificilmente se alcança pelo esforço intelectual: são pura emoção, potência vital a lembrar a importância e o inestimável valor da cultura popular.

Mestre Biscoito, pescador, passou o comando do reisado para seu filho Mes'Curuta, pescador e ponta-direita do Bahia, time da rua de Baixo. Isso, num tempo quase encoberto por ervas daninhas.

Bem, mas hoje é dia 06 de janeiro. Viva Santo Reis! Viva a chula do Velho Chico!

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

SPONDIAS TUBEROSA


Na seca de trinta e dois / Eu vi era danada / O grande virou pequeno / E o pequeno virou nada.

Meu pais me falaram da "seca de 32", eles crianças à época. E me contaram que no Brundué houve quem arrancasse raiz de umbuzeiro para fazer farinha de sua "batata". Todos se alimentam do umbuzeiro: gente, gado, pássaros. Não à toa é chamada (será que ainda?) de árvore sagrada do sertão. 

Minha periódica secretária do lar trouxe os umbus de Cosme de Farias. Mas eu já estava novamente na estrada, no rumo de uma praia, onde umbu soa mais estranho que anamnese. Então, só acabei com meus dentes nos umbus já em 2014. 

O que não contei, ainda, é que antes do ano acabar passei num mercadinho e comprei polpa de umbu. E tomei, enfim, um suco de umbu, que deu pro gasto. Da mesma forma, o tal de reveion (fica escrito assim pois não encontrei o vocábulo no meu exemplar do VOLP e grafá-lo em francês parece-me um claro exagero).


Imagem: focadoemvoce.com