sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O MAL DE MONTANO, ENRIQUE VILA-MATAS


[...] A literatura, disse-me, está sendo acossada, como nunca o tinha visto até agora, pelo mal de Montano, que é uma perigosa doença de mapa geográfico bastante complexo, pois é composta das mais diversas e variadas províncias ou zonas maléficas; uma delas, a mais visível e, talvez, a mais populosa, em todo caso a mais mundana e a mais estúpida, acossa a literatura desde os dias em que escrever romances se converteu no esporte favorito de um número quase infinito de pessoas; dificilmente um diletante se põe a construir edifícios ou, logo de saída, fabrica bicicletas sem ter adquirido uma competência específica: sucede, ao contrário, que todo mundo, exatamente todo o mundo, sente-se capaz de escrever um romance sem nem sequer ter aprendido os instrumentos mais rudimentares do ofício, e sucede também que o vertiginoso aumentos desses escrevinhadores terminou por prejudicar gravemente os leitores, afundados hoje em dia numa notável confusão.


Estou às voltas com "O mal de Montano", do Enrique Vila-Matas. Sempre uma boa aula. Adiante voltarei ao livro aqui no blog.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

EMERGÊNCIA, MÁRIO QUINTANA


Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
- para que possas profundamente respirar.

Quem faz um poema salva um afogado.


Nada dizer mais. Um poema de Quintana salva vidas, todo dia. Aqui fica esse para emergências.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

A MENINA COM A LAGARTIXA, BERNARD SCHLINK

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A menina vestia uma saia vermelho-escura e, sobre uma blusa amarelo-clara, uma peça amarelo-escura, semelhante a um corpete atado folgadamente às costas. Grande parte de sua roupa e de seu corpo estava oculta pelo rochedo sobre o qual a menina deitava seus braços pequenos e arredondados e apoiava seu queixo. Ela poderia ter uns oito anos. O rosto era um rosto de criança. Mas o olhar, os lábios cheios, os cabelos que se encaracolavam à testa, caindo sobre as costas e os ombros, não eram infantis, mas sim femininos. A sombra que os cabelos jogavam sobre as bochechas e as têmporas era um mistério, e a escuridão da manga afofada, dentro da qual sumia o braço nu, uma tentação. O mar, que se estendia atrás do rochedo e de uma faixa estreita de areia até o horizonte, lançava ondas pesadas à praia, e através das nuvens escuras a luz do sol irrompia fazendo com que uma parte do mar brilhasse e o rosto e os braços da menina resplandecessem. A natureza transpirava paixão.


     O parágrafo acima descreve o quadro que dá título a essa novela de Bernard Schlink, publicada isoladamente aqui no Brasil pela Record, em 2010, com tradução de Marcelo Backes. Originalmente, "A menina com a lagartixa" integrou o livro de narrativas curtas intitulado "Liebesfluchten", que saiu na Alemanha em 2000, de onde foi extraída também a novela "O outro".
     A novela "A menina com a lagartixa" traz a relação amorosa de um garoto com um quadro, ou com a menina do quadro, descrita acima. Desde cedo, o garoto aprecia o quadro no escritório do pai, um juiz de direito que depois se torna vendedor de seguros e alcoólatra. Com a morte do pai, o agora estudante de Direito herda o quadro, que assume lugar na parede acima da cama em seu quarto. A existência do quadro é cercada de mistério quanto a seu autor e sua origem na família. Em busca de respostas, o protagonista mergulha no passado de sua família próxima e nos horrores da Segunda Guerra. 
     Schlink conduz a narrativa com leveza. Mas nada pode ser leve em almas presas a mistérios. Passo a passo, a paixão que o quadro transpira toma conta do estudante, que o esconde das visitas, que conversa com ele, ou com ela, a menina. O tipo de paixão que leva a desastres. Uma leitura prazerosa e enriquecedora, que recomendo.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

BEBÊS DE "AMOR À VIDA"


Tudo começou com Paulinha: nasceu num banheiro sujo de bar para ser jogada numa caçamba de lixo.Mais tarde, foi sequestrada, levada para o Peru, onde quase foi atirada de um penhasco. Cresceu, ficou bem.

Depois, outros vieram:

1) a Palhacinha, Mary Jane, vive aos cuidados da avó materna, vendedora de hot-dog que não tem empregada doméstica, e fica na casa da avó paterna, vez em quando. As duas avós trabalham e namoram muito. O pai, raramente, aparece; a mãe, agora ex-BBB, ignora a filha. Quem cuida dessa criança nas inúmeras horas de necessidade?

2) o Fabrício, nascido de barriga de aluguel, tornou-se pivô de um conflito entre a mãe e os pais. Levado pra cá, arrastado dali, sequestrado (raptado, na linguagem da novela), ouve gritos, sofre apertões, toma banho de lágrimas. Esse, pelo menos, é cuidado por uma babá e recebe amor e carinho de um dos pais. Mas tem sofrido, a criaturinha;

3) e há o filho da Aline com o dr. César. Odiado pela mãe, vive largado em meio à porcaria, ouve sussurros pavorosos da mãezinha, sofre maus-tratos, já ficou desnutrido. De vez em quando, alguém vai cuidar dele, mas se dá mal por causa disso.

Alguém ali odeia bebês.

domingo, 19 de janeiro de 2014

SALVADOR, ZONA AZUL (XI)


Verão. Queixas quanto ao desempenho do ar-condicionado do carro.
Na concessionária:
- Não tá dando conta. Meio-dia, na posição 4, é mesmo que nada.
Verificaram. E o diagnóstico: vazamento do gás.
- Não podemos fazer o conserto aqui, pois o aparelho foi instalado, não veio de fábrica.
Fiquei sabendo disso ali, dois anos depois de comprar o carro na mesma concessionária.
Levei o automóvel, então, para a empresa especializada em refrigeração de carros que teria instalado o aparelho.
- Disseram na concessionária que é vazamento, trocar a válvula, essas coisas.
Verificaram. Veio o diagnóstico:
- Esse pessoal de concessionária... Tem vazamento nenhum, o gás tá no topo. O problema é elétrico, o compressor não tá entrando.
Frio no corpo inteiro. Fiquei esperando o orçamento, em casa, pra não correr o risco de morrer na rua.
Toca o telefone:
- Localizamos o problema elétrico, tá consertado, fiação solta.
- Maravilha!, grito eu de cá.
- Mas tô vendo aqui que o pessoal da concessionária disse que havia vazamento...
- Sim, mas vocês mesmos disseram que não havia vazamento...
- É bom trocar a válvula, pode tá vazando... O pessoal da concessionária...
- Não entendo, vocês disseram...
- Olha,doutor, nesse calor..Eu vi aqui um vazamentinho, pouca coisa, mas tem. O aparelho estava com problema, não é? A concessionária disse que tava vazando, então é melhor trocar a válvula, repor o gás...
- E vai ficar por quanto, isso?
- Ah, são 300 reais, mas eu deixo por 250.
Verão. Queixas quanto ao desempenho do ar-condicionado. Inclusive, minhas. Chimbei nos 250.
Dormi mal. Fui buscar o carro, no outro dia, contrariado. Sensação brutal de ter sido assaltado.
Salvador, zona azulíssima.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

SALVADOR, ZONA AZUL (X)


Não, não vou falar do acarajé a R$8,50 na praia. Nem da cerveja a 8 reais, mesmo preço do litro de umbu. Tenho provado bons umbus de 2 reais o litro, trazidos lá de Cosme de Farias que, obviamente, não fica na Zona Azul de Salvador.

O fato é que precisei inverter a porta de minha geladeira. 
- Vocês fazem o serviço?
- Sim, fazemos. 
- Então...
- Vou agendar uma visita do técnico. São 30 reais a visita.
- Bem, eu preciso do serviço. Ele pode vir pronto pra fazer o serviço?
- Claro. Vai sair por 80 reais.
- Mais os 30 da visita?!
- Não, os 30 reais da visita são descontados.
- Certo. Manda o técnico vir, então. Mas, veja bem, marque pela manhã, somente pela manhã.
- Segunda-feira, pela manhã, o técnico estará aí.
Claro que o técnico não veio segunda pela manhã. Veio à tarde. E eu não estava. Telefonei novamente, novo agendamento. Pela manhã bem frisado.
Na quarta-feira o técnico veio novamente à tarde. Eu não estava em casa, pois sim.
Novo telefonema, novo agendamento, nova visita... à tarde.
Imaginem o tom de voz na ligação seguinte. PELA MANHÃ, PELA MANHÃ!
Chegou sexta-feira, a manhã passou, o técnico não apareceu. 
Por um daqueles desvios de rota, voltei pra casa depois do almoço. E adivinhem quem apareceu? Bingo!

Nem vou incomodar vocês com os detalhes hitchcokianos da inversão da porta. Direi apenas que o serviço foi feito. À tarde. Como bem quis o tal técnico.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

RENASCIMENTOS



O escritor Mayrant Gallo escreveu, em seu blog "Não Leia", o post "Desparecimentos", motivado por um texto apócrifo que rola na web, tratando de coisas que desaparecerão de nossas vidas; texto que, por sarro, encaminhei a alguns amigos.

Mas ai me veio a vontade de listar o contraponto ao texto anônimo: as nove coisas que renascerão em nossas vidas. Por sarro, óbvio. E por estar de saco cheio de oficinas mecânicas, onde perdi o dia de hoje e perderei o de amanhã.

1. Moleque de recados (pra quando os Correios fecharem as portas)
2. Bilhetinhos (pra quando toda tecnologia emudecer, cair, perder o sinal, por falta de energia elétrica)
3. Disco de vinil (ah, este continua vivíssimo aqui em casa, mas renasce alhures; faltando energia, ressuscitaremos a manivela)
4. Túneis caseiros (pra fugir do cerco que os bandidos fatalmente farão às casas)
5. Carroça (pra quando o petróleo acabar ou o litro de gasolina alcançar mil reais)
6. Sarau e Serenata (com o fim da música gravada, voltaremos a cantar em grupo para alguém ou para nós mesmos)
7. Guilhotina (está voltando ao uso no Maranhão; aguarda-se a vez do uso original)
8. Intimidade (atividade de resistência exercida por pessoas que amam e se amam)
9. Amor (sentimento preservado por algumas pessoas em favor da condição humana)

Na verdade, tudo acaba e tudo renasce, sob diversas formas, em algum lugar, em alguma pessoa. E toda lista não ultrapassa a condição de bobagem, como a carta de amor.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

SONHOS DE TREM, DENIS JOHNSON


Um dos protagonistas mais interessantes que conheci: Robert Grainier, o que se omite ou o que não se importa. Quando criança, foi despachado para a família de um tio e jamais se preocupou em perguntar quem eram ou foram seus pais. Quando rapaz, topou na mata com um moribundo que lhe passou informações sobre os motivos e o sujeito que o “matara”, e voltou a pescar sem nada contar depois ao xerife. E assim pela vida afora, incluindo suas mulher e filha desaparecidas em um incêndio florestal – passado o choque inicial, montou acampamento na margem de um rio e ficou por ali meses a pescar. 
A vida de Grainier possuía o limite dos seus braços e passos. Um homem a cortar madeira, fincar dormentes em estradas de ferro, estender pontes sobre abismos e a sonhar com trens, sempre de volta à cabana na floresta, onde também aprendeu a uivar em noites quentes. E nem mesmo seu encontro com a menina-lobo, que assombrava os moradores da montanha, e a absurda verdade que se desvenda a seus olhos, move-o para além dos limites do seu terreiro, por onde elas (a menina-lobo e a verdade que lhe segue de arrasto) escapam mais tarde. Somente a pulcritude de Miss Galveston, a atriz do ousado filme “Pecados de amor” o perturba, o empurra para longe da tela, a tal  pulcritude. Delicioso romance curto desse autor nascido na Alemanha, filho de pais americanos, que teve publicados pela mesma editora os romances “Ninguém se mexe” e “Árvore de fumaça”. 

Sonhos de trem, de Denis Johnson (trad. Alexandre Barbosa de Souza| Cia das Letras, 2012, publicado originalmente na revista eletrônica Verbo21 (www.verbo21.com.br)..

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

DIÁRIO DA QUEDA, MICHEL LAUB

A questão judaica exposta de maneira surpreendente por um judeu brasileiro. Avô, pai e o neto que narra o ser judeu em terras brasílicas. E as inevitáveis perguntas existenciais. Lembra Philip Roth no destemor do enfrentamento familiar. Mas como se fosse um canivete afiado, não uma metralhadora de mil tiros. Laub concentra sua narrativa em um momento crucial da adolescência do protagonista: no aniversário do único estudante gói da escola, seu grupo de estudantes judeus deixa cair no chão o aniversariante, depois de jogá-lo pra cima repetidas vezes num simulacro de ritual, o que quase aleija o rapaz. Mais tarde, o narrador será o único judeu em uma escola gói e enfrentará as conseqüências por sua escolha. Inversão de algozes, remorso, purga, e uma amizade surgida sobre tais alicerces. 
Narrativa fragmentada, um esforço de memória que eclode num momento crucial do protagonista adulto, uma demonstração de técnica e linguagem apuradas. O gesto de hoje deflagra uma lembrança de anteontem (madeleines), as decisões de hoje podem ter como base um acerto com o passado – tudo está conectado (passado, presente e futuro desejado), nada se faz gratuito. Inexorável viver, inevitável queda, possível reerguer: o avô no neto, enfim. 

Diário da queda, Michel Laub, Cia das Letras, 2011, publicado originalmente na revista eletrônica Verbo21 (www.verbo21.com.br), na seção Crítica Rasteira.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

SANTO REIS


Assim, Santo Reis, singular e plural.

Cresci ouvindo noite adentro o batuque do reisado de Mestre Biscoito. E acompanhando, sempre que possível, a bandeira de Reis em visita às casas. Em algumas, o reisado alongava a cantoria entre comes e bebes. Ritmo hipnótico, fascinante o sapateado e o rodopio das mulheres dentro do círculo. 

As chulas de louvação e de saudação aos donos da casa não me interessavam muito, gostava mesmo - e ainda gosto demais - era daquelas improvisadas sobre temas do cotidiano da comunidade.

"Foi s'imbora da ilha Grande / Cantador mais Chinchinha / Mudaram pro Poço do Mel / Pensando que ia enricar / Mas o Deus daqui / É o mesmo Deus de lá."

"Eu bem falei pra Zequinha / Que botasse roça no centro / Pois roça em beira de estrada / Não amadurece mantimento / Se um ladrão passa fora / Quatro, cinco, passa dentro."

Essas chulas, e outras igualmente belas, são sempre cantadas pela rapaziada de Ibotirama, em qualquer cantoria de bar ou em volta de churrasqueira. Gostaria de saber mais delas, suas letras inteiras, sempre modificadas ou ampliadas pelos cantadores. São letras que expõem a vitalidade criadora do homem simples e uma beleza, uma sabedoria, que dificilmente se alcança pelo esforço intelectual: são pura emoção, potência vital a lembrar a importância e o inestimável valor da cultura popular.

Mestre Biscoito, pescador, passou o comando do reisado para seu filho Mes'Curuta, pescador e ponta-direita do Bahia, time da rua de Baixo. Isso, num tempo quase encoberto por ervas daninhas.

Bem, mas hoje é dia 06 de janeiro. Viva Santo Reis! Viva a chula do Velho Chico!

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

SPONDIAS TUBEROSA


Na seca de trinta e dois / Eu vi era danada / O grande virou pequeno / E o pequeno virou nada.

Meu pais me falaram da "seca de 32", eles crianças à época. E me contaram que no Brundué houve quem arrancasse raiz de umbuzeiro para fazer farinha de sua "batata". Todos se alimentam do umbuzeiro: gente, gado, pássaros. Não à toa é chamada (será que ainda?) de árvore sagrada do sertão. 

Minha periódica secretária do lar trouxe os umbus de Cosme de Farias. Mas eu já estava novamente na estrada, no rumo de uma praia, onde umbu soa mais estranho que anamnese. Então, só acabei com meus dentes nos umbus já em 2014. 

O que não contei, ainda, é que antes do ano acabar passei num mercadinho e comprei polpa de umbu. E tomei, enfim, um suco de umbu, que deu pro gasto. Da mesma forma, o tal de reveion (fica escrito assim pois não encontrei o vocábulo no meu exemplar do VOLP e grafá-lo em francês parece-me um claro exagero).


Imagem: focadoemvoce.com