quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

UM 2016 SUPORTÁVEL


   DIANTE DO QUE ENFRENTAMOS EM 2015, RESTA-NOS DESEJAR QUE O ANO QUE SE APROXIMA SEJA SUPORTÁVEL.
   QUE TENHAMOS FORÇA E PACIÊNCIA SUFICIENTES PARA AS LABUTAS QUE 2016 PROMETE.
   QUE SAIBAMOS APROVEITAR OS MOMENTOS DE PAZ E ALEGRIA EM TODA SUA EXTENSÃO E PROFUNDIDADE.
   QUE POSSAMOS CONVIVER MAIS COM AS PESSOAS QUE AMAMOS E ADMIRAMOS.
   QUE, MESMO ATRIBULADOS, DEDIQUEMOS TEMPO A PRODUZIR O MELHOR QUE O NOSSO TALENTO PERMITIR.
   PARA QUE NO FINAL DE 2016 TENHAMOS POUCO QUE LAMENTAR.
   QUE VENHA O NOVO ANO, O NOVO VELHO TEMPO E SUAS EXIGÊNCIAS.
   QUE ESSE VELHINHO AQUI TÁ COM VONTADE DE CUSPIR NA CARA DELE.
   DE BOA.
   CARPEM DIEM, PESSOAL!

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

ANDRÉ CARAMURU AUBERT, A CULTURA DOS SAMBAQUIS


 

   Romance costurado por muitas vozes, uma voz sendo: a de um brasileirinho de origem estrangeira, escavando suas raízes. Por isso dói. Somos mesmo esse que caminha entre mata e mar, por uma areia fofa que exaure nossas forças. E que não chega a lugar algum. Talvez a um rio, onde um barqueiro que se ri de nossa desdita faça a precisa travessia.
   Aquele que fomos construiu morros imensos de conchas marinhas, ao longo da costa, os sambaquis. Juntou a elas ossos de seus mortos. Aquele que chegamos a ser mais tarde triturou esse legado para pavimentar ruas e adubar terrenos. Aquele que somos espezinha uns e outros em meio a uma ignorância exasperante. E se mata e se morre em plena obscuridade.
   A cultura dos sambaquis é um romance que honra a tradição da prosa brasileira: ousa na forma, ao coligir o material de pesquisa do protagonista, revela facetas pouco conhecidas de nossa história, antiga e recente, explora a aventura quixotesca das gerações pós-64, investiga a multiplicidade de vivências que os tempos modernos nos propiciam e trafega, por assim dizer, entre realidade e ficção com uma pegada forte e envolvente.
   André Caramuru Aubert consegue um feito notável: conduz uma investigação de paternidade como se fosse investigação da identidade do ser brasileiro, já adiantei isso acima. Isso provoca no leitor a mais positiva das inquietações, a de se descobrir na leitura do livro. Somos esse misto de idealismo e de interesses desorientados, repleto de incompletudes formais, projétil que ricocheteia nas paredes do tempo, ora acertando isso, ora aquilo, ora a si mesmo, produtor de obras inacabadas, o que se consome em seus equívocos até desaparecer como promessa de grandes possibilidades, o que poderia ter sido, aquele que poderia ter dado uma grande contribuição etc. Igualzinho ao país do futuro que habita. Nossa cultura.
   O livro foi publicado pela editora paulista Descaminhos, em 2014, e pode ser adquirido pelo sítio www.editoradescaminhos.com.br. Fica aqui uma entusiasmada recomendação de leitura.
 
 

domingo, 13 de dezembro de 2015

EMMANUEL MIRDAD, OLHOS ABERTOS NO ESCURO



    Por problemas gráficos, o lançamento do novo livro de contos de Emmanuel Mirdad, Olhos abertos no escuro, teve seu lançamento, que aconteceria amanhã, dia 15.12, suspenso, sem nova data e local ainda definidos.
     Mirdad distribuiu mensagens pela internet lamentando o ocorrido e se desculpando com todos os convidados. No sábado, o Autor estará na livraria Boto Cor-de-Rosa palestrando ao lado dos escritores Saulo Dourado, Márcio Mattos e Victor Mascarenhas.
      Então ficamos combinados assim, até lá.
   

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

TOM CORREIA - LADEIRAS, VIELAS & FARRAPOS




    Sábado que vem, dia 12, na livraria Boto Cor-de-rosa, na Barra, a partir das 14h, acontecerá o lançamento do novo livro de contos de Tom Correia, "Ladeiras, vielas & farrapos", publicado pela editora Via Litterarum. Apareçam!

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

OBVIEDADES BRASILEIRAS 2

 
1.   Quando eu faço, negocio; quando ele faz, chantageia.
 
2.   Ninguém aqui é mais honrado que eu, é o brado dominante.
 
3.   O PT está no poder desde 2002. O governo Dilma é do PT. Dilma, no entanto, não é Lula. Portanto, nada mais óbvio a deputados do PT votarem contra Cunha, para que Cunha instaurasse imediatamente o processo de impeachment de Dilma.
 
4.   Que outros arrumem a bagunça que fizemos. Depois a gente retorna para fazer a farra de novo, é a trama dominante.
 
5.   Dilma está sendo abandonada bem antes do que se pensou. Dilma não é histórica, é história.
 
6.   Fosse verdadeiramente europeia, Dilma abandonava  antes o PT e o poder. Mas isso não é óbvio em nossas plagas.
 
7.   Não tem graça se o circo não pega fogo.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

BORBOLETAS BAIANAS


Tomo conhecimento das borboletas baianas.
Não das que vejo nos jardins, mas daquelas que voejam em casamentos.
Nossas borboletas fazem sucesso em casórios Brasil afora.
Viajam de avião, em caixinhas com furos para ventilação.
As borboletas são exigência de noivas românticas.
Querem com elas embelezar suas histórias de amor.
Mas são caras nossas borboletas, muito caras.
Precisam ser contadas para o devido pagamento.
Para tanto, colocam as caixas por um tempinho em geladeiras.
É que assim as borboletas desmaiam.
E é possível fazer a contagem, business is business.
As caixas são levadas ao pé do altar, onde quer que esteja.
E lá aguardam pelo grande momento, as sobreviventes.
Na saída do novo casal, as borboletas são soltas.
Mas estão fragilizadas, tontas, quase mortas.
Então as cerimonialistas dão o último toque ao show.
Batem nas caixas para espantar as borboletas.
Que se projetam no ar em último arquejo de vida.
Para morrer em seguida em pleno voo.
Ou onde pousarem.
Depois de obterem o aplauso da plateia.
E ares de extremo contentamento dos nubentes.
Aquele batalhão de borboletas baianas.
Borboletas que viajaram de avião e desmaiaram no gelo.
Em suas curtas vidas de tortura e horror.
Para beleza e glória do amor.
Do amor?

sábado, 28 de novembro de 2015

OBVIEDADES BRASILEIRAS


1.   Não há terremoto no Brasil. Nem tsunami. Nem furacão. E recentemente tivemos a garantia presidencial de que estamos livres de atentado terrorista. Deus é brasileiro. Portanto, não há nenhuma necessidade de se preparar ou ter qualquer plano institucional para qualquer tipo de emergência. Para quê? Emergência é emergência, resolve-se com o que tem, do jeito que dá, da maneira que for. Simples, assim. Obviamente, ninguém jamais pensou que uma barragem de rejeitos minerais pudesse se romper...
 
2.   O PT não abandona nem expulsa petista histórico. Vide José Dirceu e Vaccari Neto. Portanto, alguém aí avise a presidente Dilma que, se acontecer a ela a primeira coisa ruim, a segunda será inevitável, dita e certa. Vide André Vargas e Delcídio Amaral.
 
4.   Jaleco branco é símbolo positivo de status. Portanto, fica assim justificado o uso do jaleco pelo bom doutor, ou enfermeiro, ou auxiliar, de qualquer gênero, quando vai fazer uma boquinha na lanchonete do outro lado da rua. E depois retornar ao ambiente asséptico do hospital, clínica ou posto de saúde.
 
5.   Consultoria não se confunde com assessoria nem com lobby. É instrumento ideal de remuneração para serviços inexplicáveis, por qualquer ângulo que se observe e analise. Basta copiar e colar, que uma grana alta e sonante cai na conta corrente. Principalmente se o consultor for da casa, do time, da turma, essas coisas...
 
6.    A obviedade número 3? Pessoal, esse é um óbvio que não se pode escrever. Ainda. Quem sabe ano que vem?  

terça-feira, 24 de novembro de 2015

TRÊS VEZES AO AMANHECER, de ALESSANDRO BARICCO



   Depois de passeios pela noite alta, fiz um retorno ao "Três vezes ao amanhecer", o livro de contos de Alessandro Baricco, publicado pela Objetiva, selo Alfaguara, este ano, em tradução de Joana Angélica D'Ávila Melo. O livro surgiu primeiro no romance "Mr. Gwyn", do próprio autor, como misteriosa publicação de um certo Akash Narayan. Em nota introdutória, Baricco diz que, enquanto escrevia o romance, "senti vontade de também escrever aquele livrinho, um pouco para dar uma leve e distante sequência a 'Mr. Gwyn'  e um pouco pelo simples prazer de perseguir uma certa ideia que eu tinha na cabeça." Uma maravilha de livro.
 
   Aqui estão alguns trechos de "Três vezes ao amanhecer":
 
   UM
   [...] Depois foi até a cama e enquanto atravessava o quarto percebeu a luz que se filtrava pelas cortinas. Voltou e com uma das mãos procurou os cordões para abri-las, recordando como era matemático, embora por razões incompreensíveis, puxar sempre o cordão errado, aquele que abre quando você quer fechar e vice-versa. [...] Estava amanhecendo. Olhou o céu longínquo, clareado por uma luz ambígua, e não teve mais certeza de nada. [...] Havia aquela luz. Achou que era um convite, mas agora lhe parecia complicado entender se era dirigido também a ele. Olhou o relógio como se houvesse alguma probabilidade de encontrar ali uma resposta qualquer e não deduziu nada de útil, exceto a vaga impressão de que era uma hora errada para um monte de coisas.
 
   DOIS
   E de fato, naquela manhã de verão, a alvorada se espalhava pelo céu límpido com tal segurança que até aqueles subúrbios sem ambições pareciam apanhados de surpresa, acabando por ceder a uma quase beleza para a qual não tinham sido construídos. Havia reflexos otimistas nas janelas, e a pouca grama brilhava, onde havia, com um verde inesperado. Passavam carros, raros, e até eles pareciam ter suspendido qualquer pressa especial, como se estivessem atravessando uma trégua.
 
   TRÊS  
   E, de fato, do horizonte havia subido uma luz cristalina para reacender as coisas e repor o tempo em movimento. Talvez fosse o reflexo sobre o mar, distante, mas havia algo de metálico no ar que nem todas as alvoradas têm, e a mulher pensou que isso a ajudaria a permanecer lúcida, e calma. [...] Aquela luz a ajudava. [...] Agora dirigir era mais fácil, e nem mesmo o fato de estar havia horas ao volante lhe pesava mais. [...]
   [...] Olhava aquela casa, diante de si, e pensava na misteriosa permanência das coisas na corrente sempre movediça da vida. Estava pensando que a cada vez, vivendo com elas, acaba-se por deixar-lhes em cima como que uma leve mão de tinta, a cor de certas emoções destinadas a desbotar, sob o sol, em lembranças.
 
 
 

domingo, 22 de novembro de 2015

NOITE ALTA, RUY ESPINHEIRA FILHO

  
   Passeio pela noite alta, aquela desvestida de qualquer vestígio diurno, de anoitecer e da noite inicial, sempre agitada por luzes e vozes.
   Passeio pela noite alta, aquela encorpada, silenciosa e densa: noite quase pura, que antecede um novo alvorecer. Aquela em que até os galos ainda dormem.
   Essa noite alta está posta em livro por Ruy Espinheira Filho. E é por ela que passeio.
   O poeta faz sua saudação agradecendo "Ainda poder / escutar a Musa, / embora já imerso / na sombra difusa." Acontece que a sombra do poeta é facho que ilumina a todos que alcança. Todos que estamos imersos na pior sombra, essa do cotidiano de sangue e de mentiras.
   O  poeta ilumina nossa noite a partir de um caminho de memórias de vida e morte, de outros tempos, outras ruas e noites em que moravam anjos. E em que a sombra de Orfeu descia docemente sobre aqueles que, "[...]encantados, / ainda iriam arder vidas inteiras".
  A noite alta não oferece mapas, nem o poeta a isso se dedica. Ao contrário, escancara portas e novas trilhas ao revelar trazer consigo "[...] de modo claro ou obscuro, / cada vez mais saudades do futuro".
   Nessa noite alta não se deve acompanhar o poeta, passo a passo, pois há golpes de ventos súbitos e retornos inesperados e leituras e releituras de livros e episódios, dilúvios e anjos da guarda, meninas mortas e cidades antigas; e porque é alta essa noite também nela se encontra muita teia de sonhos.
    Não se trata de um passeio no parque, esse que se faz pela noite alta. Há tumultos cordianos desde o antológico poema "Dias", nas páginas iniciais. Outros baticuns cardíacos afloram quando nos deparamos com as moças de antigamente, postas em soneto memorável, do qual se extraí a preciosa lição de "ser feliz por ter sofrido tanto".
   Passeio, não viagem. Por isso mesmo, retornamos ao conforto do nosso tempo para depois, descansada a alma, voltarmos a essa noite alta com que o poeta nos brinda. Noite para muitos passeios e contemplações. Nela, o tempo do poeta, dilatado em seus extremos, é próprio mas universal. E exige leveza do leitor na aproximação. O poeta pensa seus tempos para nos entregar beleza em versos, reconhecendo: "não sei como poderia transmitir a alguém a alma / daquele tempo".
   Noite alta, o tempo da alma.


Noite alta e outros poemas, de Ruy Espinheira Filho, publicado pela editora Patuá, SP, 2015.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

OBSCENAS - OBITUÁRIO

   OBITUÁRIO

   O leiteiro, o amolador de facas.
   O monóculo.
   O slide e seu projetor.
   O walkman, o toca-fita.
   O estêncil e o mimeógrafo.
   A conduta ilibada, o notório saber.
   A parte que nos devia caber.
   O valor literário.
   A arte.

domingo, 15 de novembro de 2015

ELES ATIRAM EM VOCÊ


eles atiram em você
quando matam franceses
espanhóis russos ingleses
norte-americanos
muçulmanos libaneses
eles atiram em você

brotam de antigas eras
hoje como ontem e amanhã
para matar em nome de deus
sua infidelidade cristã
seus valores ateus
em você eles atiram
quando matam judeus

em você atiram
a barbárie de séculos findos
eles matam você
naquele que cai degolado
queimado afogado esfaqueado

é em você que atiram 

e cada corpo tombado
seu nome ostenta
homem mulher criança
que a eles não se junta

eles atiram em você exatamente agora

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

MERIDIANO DE SANGUE, CORMAC McCARTHY


   Toadvine e o kid permaneciam em seus cavalos contemplando aquela desolação com os demais. Na extensão distante da playa um oceano frio rebentava e água desaparecida havia milhares de anos esparramava-se em marolas prateadas sob o vento matinal.
   Parece o barulho de uma matilha de cães, disse Toadvine.
   Pra mim parecem gansos.
   De repente Bathcat e um dos delawares viraram seus cavalos e os fustigaram e gritaram e a companhia fez meia-volta e se agrupou e começou a percorrer numa fila o leito do lago na direção da exígua linha de arbustos que delimitava a margem. Homens pulavam de seus cavalos e os manietavam instantaneamente com peias de corda arranjadas de improviso. No instante em que terminaram de prender seus animais e haviam se atirado ao solo sob a moita de creosoto com armas a postos os cavaleiros começaram a surgir distantes no leito do lago, um fino friso de arqueiros a cavalo que bruxuleavam e guinavam sob o calor crescente. Cruzaram a frente do sol e evaporavam um a um para então reaparecer e eram negros sob o sol e cavalgavam através daquele mar evaporado como fantasmas estorricados com as patas dos animais pisoteando e agitando a espuma que não era real e se perderam sob o sol e se perderam no lago e tremeluziram e se agruparam em um borrão para então dispersar novamente e cresceram plano a plano em lúridos avatares e começaram a se amalgamar e então começou a aparecer acima deles no céu puncionado pela aurora um símile infernal de suas hordas cavalgando em fileiras gigantescas e invertidas e as patas dos cavalos incrivelmente alongadas pisoteando os cirros finos e elevados e os ululantes antiguerreiros pendendo de suas montarias imensos e quiméricos e os gritos altos e selvagens repercutindo através daquela bacia achatada e estéril como os gritos de almas invadindo por algum rasgo no tecido das coisas o mundo inferior.
 
 
 
A isso chamo de momento grandioso da literatura, o narrador inteiramente dentro da cena, partícipe e menestrel, trazendo para o texto toda a potência e colorido da movimentação dos personagens, embriagando o leitor com sequências de imagens de esbugalhar olhos e reter respiração.
Cormac McCarthy, em "Meridiano de sangue" (tradução de Cássio de Arantes Leite, Alfaguara/Objetiva, 2009), alcançou o topo dos grandes romancistas universais em 1985. Leio mais uma vez o "Meridiano de sangue" pelo simples prazer da leitura de um belo texto. E sentindo suas semelhanças com o "Grande sertão: veredas", de Guimarães Rosa, os espaços imensos, a guerra fratricida, os limites extremos de generosidade e violência, o desamparo do homem diante da força da natureza, a base histórica. E até um Candelário já encontrei no "Meridiano"...rs. Fica a sugestão de leitura necessária.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

HUMANOS NO MEIO DA TARDE


   A carga era muito alta. A lenha se apinhava na carroceria de forma desigual. O caminhão balançava na pista. Seguia à nossa frente a uma velocidade que nos parecia inadequada para aquele estropício. A rodovia, no meio da tarde de um domingo, não apresentava o costumeiro e ensandecido movimento. A 101 tranquila.
   Entre nosso carro e o caminhão trotava um Fiat Uno do século passado. Então veio a curva, aberta e plana, sem maiores dificuldades. Mas foi ali que o poeirão subiu na lateral da pista. Ao meu lado, M gritou:
   - Meu Deus, Carlos, uma batida, o caminhão virou!
   O Uno sumiu na poeira, eu puxei meu carro para o meio da pista, tentando contornar o que não via bem, temendo bater em algo que tivesse se soltado do acidente, aproveitando a ausência de trânsito no sentido contrário, e assim venci aquele pequeno trecho em perturbação. Vi as rodas do caminhão para cima, girando velozmente, e a carroceria meio esmagada contra o capim do acostamento. Parei meu carro logo depois do Fiat Uno. Outros carros começaram a parar nos dois lados da rodovia.
   Não houve batida, o caminhão havia tombado, muito provavelmente por conta do empuxo da carga na curva. O motorista do Uno confirmava que o caminhão vinha dançando na pista. E assim nos aproximamos da cabine e das pessoas que estavam lá dentro.
   Com o celular na mão, não consegui me lembrar do número do Samu ou da Polícia. M ficara no carro. Uma ambulância de atendimento intensivo havia parado e o condutor já estava ao celular falando com os socorristas e passando a localização do acidente. Parecia saber bem o que fazer naquela situação. O homem contornou a cabine e abriu a outra porta.
   - Duas vítimas, desacordadas, é, duas vítimas.
   E balançou negativamente a cabeça. Eu guardei meu celular no bolso e não me aproximei mais. M me chamava; havia saído do carro e me chamava. Troquei duas palavras com o condutor do Fiat Uno e voltei pro meu carro. Nada mais a fazer ali. 
   Do outro lado da pista, motoristas desciam dos seus carros com celulares nas mãos. E fotografavam sem cessar, de vários ângulos, o caminhão tombado. Não quisemos mais ver aquilo.
   Fizemos orações, em silêncio, por todos eles.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

ELES SE ATIRAM AO MAR


eles se atiram ao mar
num reverso de parto

atravessam essas águas
afundam nessas ondas
morrem naquelas praias
somem noutras espumas

eles buscam novo porto
com mulheres e filhos
e a mão pesada de deus
a desapontar rumos

se atiram ao mar antigo
para viver antigas penas

carne entre espadas
grãos na moenda
números na tevê
irmãos retirantes

ao mar se atiram
porque atiram neles
- via cruciante

e do mar se retiram
errantes e estropiados
e do mar são retirados,
os que não mais respiram

e no já velho mundo
correntes se tornam
de um outro mar revolto:
sangue, suor e luto
que entornam certezas
e rasgam fronteiras

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

SONETO DAS MOÇAS DE ANTIGAMENTE



Elas eram bonitas de doer.
À tarde passeavam no jardim.
Cintilavam nas festas e em mim,
que as sofria até quase morrer.

Elas eram bonitas de fazer
chorar o coração... E sempre em mim
davam bailes cruéis. Eram assim,
e eu nunca me furtava a esse sofrer

por seus olhos, seus rostos, seus joelhos,
que mágicos tornavam os espelhos
todos. Eram assim. E eis que esse encanto

persiste. E eu agradeço, ainda encantado,
por lhes dever, antes e agora, o fado
de ser feliz por ter sofrido tanto.


Extraído do novo livro de poemas de Ruy Espinheira Filho, Noite Alta, editora Patuá, SP, 2015.

domingo, 25 de outubro de 2015

MR. HOLMES



  Um Sherlock Holmes de 93 anos de idade será sempre um detetive de mente acurada, mesmo que a memória já não seja a mesma. Ian McKellen serve como uma luva (aliás, peça importante na trama) ao papel. Laura Linney, contraponto de Holmes como sua governanta, constrói muito bem a face emocional e impulsiva do conto. E Milo Parker, filho da governanta, açoitado por essas duas forças, faz a projeção do espectador aprendiz e atilado.
  
  Recolhido a uma casa no interior, cuidando de um apiário e manipulando poções em seu laboratório, Holmes luta contra os efeitos da senilidade. Um homem que se aproxima do fim de sua existência e que de repente não se lembra mais dos detalhes do seu último caso. Justo o caso que motivou seu afastamento da profissão e do convívio social. Sem Watson a seu lado, o velho Holmes resolve escrever para lembrar, escrever para acertar contas consigo mesmo.
  
  O garoto estimula o mestre, que avança em sua escrita/relembrança aos tropeços. O filme trata de perdas: de memória, partes de si mesmo que se apagam como lâmpadas em cômodos diversos, de possibilidades afetivas, linhas de vida que se fecharam por medo e insegurança, de potência vital, debilidades físicas que se avolumam com o envelhecimento. Perdas que uma mente poderosa não aceita como definitivas. O filme nos mostra, com lirismo e drama, que as perdas de uma vida podem ser sempre compensadas antes de partir. E que nas vidas banais pulsam o que mais importa: companheirismo, amor, trabalho.
  
  Mr. Holmes é um desses filmes que nos pegam pela mão e nos levam a um território muito especial, o da emoção elaborada com elegância e profundidade. Não é à toa que a história começa com Mr. Holmes retornando do Japão agarrado a um pacote precioso.
 

terça-feira, 13 de outubro de 2015

KARL OVE KNAUSGARD, A MORTE DO PAI


 
   [...] Quando sabemos muito pouco, é como se esse pouco não existisse. Quando sabemos muito, é como se esse muito não existisse. Escrever é retirar da sombra a essência do que sabemos. É disso que a escrita se ocupa. Não do que acontece aí, não das ações que se praticam aí, mas do em si. Aí,  é esse o lugar e o propósito da escrita. Mas como chegar a ele?
 
   [...] Por muitos anos eu tentara escrever sobre meu pai, mas jamais conseguira, decerto porque o tema era próximo demais da minha vida, e portanto nada fácil de transpor para outra forma, o que, naturalmente, é um pré-requisito da literatura. É sua única lei: tudo deve se sujeitar à forma, como o estilo, a trama, o tema, se algum deles prevalecer sobre a forma, o resultado será insatisfatório. Eis por que autores com estilo forte costumam escrever livros ruins. E também por que autores com temas fortes costumam escrever livros ruins. A força do tema e do estilo deve ser destruída para que possa surgir a literatura. É a essa destruição que chamamos "escrever". Escrever é mais destruir do que criar. Rimbaud sabia disso melhor que ninguém.
 
 
 
   Trechos extraídos de "A morte do pai", vol. I da trilogia "Minha luta", de Karl Ove Knausgard, publicado pela Companhia das Letras, em 2a. edição, 2015.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

POEMAS EM RECIFE

 
 
    Em Recife, cruzamos a ponte Buarque de Macedo com a primeira estrofe do famoso poema de Augusto dos Anjos reverberando em nossa mente: "Recife. Ponte Buarque de Macedo. / Eu, indo em direção a casa do Agra, / Assombrado com a minha sombra magra / Pensava no Destino,  e tinha medo." Passeamos pelo Centro Antigo, vimos de longe o parque de esculturas de Brennand, fizemos e acontecemos, depois retornamos ao hotel para os devidos preparos para o encontro à noite na Fenelivros. Aí foi que Florisvaldo Mattos deu por falta da bengala. Procuramos aqui e ali, nada.
    Conta Florisvaldo Mattos: - Entrei em pânico, certo de que a esquecera no táxi de retorno ao hotel; mas logo o jovem ficcionista Carlos Barbosa veio em meu socorro e, além de me confortar com palavras afáveis de amigo, bom samaritano, emprestou-me uma das dele, alegando que possui três (rsrsrs), ante a minha falsa resistência em aceitar a dádiva (mais rsrsrs). Passado o impacto emocional, e em torno de uma taça de vinho, como convém em tais ocasiões, ele me sugere que escrevesse um poema sobre a lamentada perda. Seria como um registro memorialístico, em moldura indulgente de conforto.
    O poema saiu em forma de soneto inglês. E dedicado a mim, o que me deixa todo prosa. Aí está:
 
SONETO DA BENGALA PERDIDA
                                  A Carlos Barbosa
 
Perdi minha bengala no Recife
E nem sei se foi por ingratidão
Que escafedeu em busca de outro chão,
Talvez dizendo: "Ele não tem cacife
Para concorrer com um pernambucano".
Ou será que voltou para Paris,
Cansada de correr esses Brasis,
Que até nem mais aguenta o ser humano?
Vou lá buscá-la; só que não tenho euro,
Que é moeda de quem sabe usar bengala.
Saio do quarto e vou deitar na sala,
Supondo já que estou ficando neuro.
                Entre ficar na América do Sul,
                Quero encontrá-la voando pela Azul...
 
                          Mattos de Pernambuco
 

domingo, 30 de agosto de 2015

NA FENELIVRO, EM PERNAMBUCO


    
   Amanhã, segunda-feira, 31.08, participarei como debatedor da palestra que o escritor Ruy Espinheira Filho fará na Noite Nordestina dedicada à Bahia, na I Fenelivro. A I Feira Nordestina do Livro - Fenelivro acontece de 28 de agosto a 7 de setembro de 2015, no Centro de Convenções de Pernambuco, em Olinda. O evento será gratuito com realização da Associação do Nordeste de Distribuidores e Editores de Livros (Andelivros) e da Câmara Brasileira do Livro (CBL), em parceria com a Companhia Editora de Pernambuco (Cepe). Marca ainda os cem anos da Imprensa Oficial do Estado.
     A intenção dos organizadores é que, a partir da explanação de Ruy, o debate explore a presença da Bahia na literatura do autor e como anda a produção literária em nosso estado. A cada noite, no Salão Ariano Suassuna, um estado nordestino será representado por escritores e tratado como tema dos debates. Adiante, darei notícia do que rolar por lá, na noite baiana.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

A AMIGA GENIAL, ELENA FERRANTE



   A culpa era dela. Num tempo não muito distante - dez dias, um mês, quem sabe, na época ignorávamos tudo sobre o tempo -, ela pegara minha boneca traiçoeiramente e a jogara no fundo de um porão. Agora estávamos subindo juntas em direção ao medo, antes nos sentíamos obrigadas a descer, correndo, rumo ao desconhecido. Para o alto, para baixo, parecia sempre que estávamos indo ao encontro de algo terrível que, mesmo existindo antes de nós, era a nós e sempre a nós que aguardava. Quando se está no mundo há pouco tempo, é difícil entender que desastres estão na origem do nosso sentimento de desastre, talvez nem se sinta a necessidade de compreender. Os grandes, à espera de amanhã, se movem num presente atrás do qual há o ontem ou o anteontem ou no máximo a semana passada, não querem pensar no resto. Os pequenos não sabem o significado do ontem, do anteontem, nem de amanhã, tudo é isto, agora: a rua é esta, o portão é este, este é o dia, esta, a noite. Eu era pequena e, no fim das contas, minha boneca sabia mais do que eu. [...].



   Trecho de "A amiga genial", de Elena Ferrante, pseudônimo de uma escritora italiana que tem sido saudada como uma das mais fortes vozes da literatura contemporânea. O volume que leio, primeiro de uma tetralogia, integra a Biblioteca Azul, da Editora Globo, 2015, com tradução de Maurício Santana Dias. 

   Reclusa, Ferrante concede entrevistas apenas por e-mail e por intermédio do seu editor. Disse ela recentemente ao jornal O Globo: — No que posso, participo da vida pública, mas tenho uma opinião negativa do protagonismo e de todas as amplificações e distorções da mídia. Prefiro me expressar com a escrita, um meio de amplo controle. Quanto às entrevistas, faria tudo o que me pedem se não tivesse medo de resultar chata, repetitiva, e sobretudo se pudesse, como neste caso, escrever eu mesma as respostas. Não confio em minha oralidade, nas palavras improvisadas e, perdoe-me, em como os entrevistadores frequentemente abusam delas, quando as colocam por escrito.

sábado, 1 de agosto de 2015

QUADRILHA, OBSCENAS, CARLOS BARBOSA

QUADRILHA

Bandido prende o cidadão honesto.
Cidadão honesto elege o corrupto.
Corrupto posa de autoridade.
Autoridade se entrega ao capital.
O capital virucida o mundo.
E o mundo aplaude o bandido.



Leia esta e outras muitas micronarrativas em "Obscenas", meu mais recente livro, lançado no dia 29 de julho passado, e que já pode ser encontrado na livraria Cultura do Salvador Shopping. É baratinho: 15 reais, da P55 Edições, coleção Cartas Bahianas.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

LANÇAMENTO HOJE NA CONFRARIA DO FRANÇA


 
   
    
 DOMÉSTICA

     A mulher prepara um cozido.
     Panelão borbulha no fogo.
     Tempero verde, legumes, raízes tuberosas.
     Sal a gosto.
     Molho de pimenta reservado.
     O copo de cerveja na bancada a lacrimar.
     Depois de um gole, a mulher enxuga a testa
com o dorso da mão esquerda.
     Só então começa a esquartejar o desgraçado.


     Taí uma amostra do que o leitor vai encontrar em "Obscenas", meu novo livro de minicontos, que será lançado hoje na Confraria do França, a partir das 19h, ali no Rio Vermelho, perto do Colégio Medalha Milagrosa. Vou estar ao lado de Mayrant Gallo e seu "O enigma dos livros", livro de contos fantásticos, que já comentei em post anterior. Espero vocês lá.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

MINICONTOS, OBSCENAS

 
 
     Dei o título de Minicontos a este blog pois pretendia nele publicar... minicontos. Como fiz em blogs anteriores. Os minicontos que escrevi, de 2002 até esta parte, me renderam dois livros. O primeiro, "A segunda sombra", saiu pela Multifoco/RJ, em 2010. E o segundo sai agora pela editora P55/BA, com lançamento na próxima quarta, 29, na Confraria do França, em Salvador, a partir das 19h.
 
     Sou um escritor reconhecido pelos romances "A dama do Velho Chico" e "Beira de rio, correnteza". Um romancista que escreve minicontos pode provocar, à primeira vista, um certo estranhamento. Mas, por mais estranho que pareça, o miniconto oferece ao escritor uma liberdade semelhante àquela do romance. E eu me sinto muito à vontade com o gênero (me recuso a tratar o miniconto como subgênero).
 
     O território do romance permite ao escritor digressões, descrições, perfilamentos de personagens, notícias históricas, comentários filosóficos e psicológicos, variações na forma narrativa etc. Já o living do miniconto o desobriga disso tudo, ou faz de cada um desses recursos narrativos uma experiência micronarrativa. O miniconto dispensa até mesmo a identificação do seu protagonista. Pode preservar a estrutura do conto, com fecho de ouro e história oculta, por exemplo, condensando parágrafos inteiros numa única frase; ou pode se constituir apenas de uma frase. O título não apenas sinaliza o enredo: é parte fundamental da narrativa.
    
     Crônica, prosoema, reflexão filosófica, comentário social, piada, causo, o que seja, o miniconto sempre foi praticado, desde que alguém se dedicou a contar histórias. A internet o popularizou, está firme no meio editorial. E, sim, dá rápida vazão ao olhar crítico do autor, à sua indignação frente aos desrumos da realidade e a suas dores sempiternas. E isso é pouco diante das infinitas possibilidades criativas que oferece. 
 
    

sábado, 25 de julho de 2015

OBSCENAS


De Antônio Carlos Viana:

"Recebi os livros ontem. O seu devorei numa sentada. Muito bom de ler. Estás afiado na crueldade. Trevisan que se cuide. São contos mínimos muito bem realizados."

De Mayrant Gallo:

"Em Obscenas, Carlos Barbosa transforma a realidade imediata em literatura e inquietação. Através de minicontos poéticos, cria um mosaico dos horrores deste Brasil bizarro e sem comandante." 

quinta-feira, 23 de julho de 2015

ENIGMA DOS LIVROS E OBSCENAS



      O ENIGMA DOS LIVROS, de Mayrant Gallo, reúne sete contos do autor, entre eles aquele que dá título ao livro. Uma nota de fantástico perpassa todos os contos, o que não é novo na contística de Mayrant, um amante da ficção científica, que também pratica com muito talento.
 
      Seu famoso personagem Victor Vihil surge logo no início do livro, imprimindo essa marca de estranhamento com uma presença envelhecida e adoentada a passar por provações físicas e psicológicas em exames clínicos penosos. E a se relacionar de forma intensa com um gato de rua. Aliás, os gatos retornam adiante em um conto, digamos, próprio, agora investidos na condição de fiscais, ou gângsteres, de um sistema social apodrecido.  Os azuis mal são notados em meio a confusão provocada pela queda de um avião e seus malotes de dinheiro, sendo arrastados pela ignorância e oportunismo dos homens a um fim patético.
 
      Mayrant capta muito bem os sentidos perturbadores da vida contemporânea. O abandono, a peregrinação dos doentes, o desamparo oficial, uma realidade ao largo da dos homens comuns, comandada por não se sabe quem e que nos afeta direta e cruelmente. O enigma dos livros talvez seja o de revelar essa realidade obscura que insiste em rir dos que tropeçam nas calçadas esburacadas da vida comum. Deliciosa leitura, com a leveza preconizada por Calvino e a qualidade literária já conhecida de um dos principais ficcionistas e poetas da Bahia.  
 
      Com o livro de contos de Mayrant Gallo, O enigma dos livros, e o meu de minicontos, Obscenas, a coleção Cartas Bahianas alcança a impressionante marca de 44 títulos publicados. A coleção é publicada pela P55 Edições e tem como coordenador editorial o escritor Claudius Portugal.

terça-feira, 21 de julho de 2015

RUY ESPINHEIRA FILHO, NOITE ALTA



 
     Mais um livro de poemas inéditos de Ruy Espinheira Filho chega à praça. Agora, pela Editora Patuá, de São Paulo, cidade em que acontecerá o lançamento no próximo dia 23 de julho. Ruy, aos 72 anos de idade, tem se mostrado cada vez mais produtivo. Este ano já tivemos "Poemas de amor e morte", coletânea organizada pelo próprio autor, que integra a coleção Mestres da Literatura Baiana, publicada pela Academia de Letras da Bahia com o apoio da Assembleia Legislativa do Estado da Bahia.
     Tentamos ir a São Paulo para o lançamento, mas não deu. Mas quem estiver por aí é só aparecer na Vila Madalena, point dos descolados, na próxima quinta-feira, 23, a partir das 19:30h, no bar Canto Madalena, no endereço acima.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

CARTAS BAHIANAS E MAYRANT GALLO E CARLOS BARBOSA








Dia 29 de julho serão lançados os novos títulos da coleção Cartas Bahianas, publicada pela P55 Edições, sob coordenação do poeta Claudius Portugal. Enigma dos livros, de Mayrant Gallo, e Obscenas, de Carlos Barbosa, representam os números 43 e 44 da coleção.

O lançamento acontecerá na Confraria do França, a partir das 19 horas, numa quarta-feira. Isso é importante, numa QUARTA=FEIRA. Agendem aí, apareçam, e até lá acompanhem aqui mais informações sobre o lançamento e os livros. Fica aqui o aperitivo.

domingo, 21 de junho de 2015

O GRITO DO MAR NA NOITE, EMMANUEL MIRDAD


     O segundo livro de contos do jornalista, produtor cultural e escritor Emmanuel Mirdad, O grito do mar na noite, terá lançamento no próximo dia 30 de junho, na Confraria do França (rua Lídio Mesquita, 43, perto do colégio Medalha Milagrosa), Rio Vermelho, nesta vetusta Salvador da Bahia. O livro sai pela Via Litterarum, mesma editora que lançou o seu primeiro livro de contos, Abrupta Sede, é dedicado ao escritor baiano Hélio Pólvora, recentemente falecido, e tem posfácio de Mayrant Gallo.
   Baiano de Salvador, nascido em 1980, sócio-diretor da produtora Cali, Mirdad é um dos criadores e coordenadores da Flica - Festa Literária Internacional de Cachoeira, da qual foi curador. O autor de Nostalgia da lama (poesia, Cousa, 2014) e Abrupta Sede (contos, Via Litterarum, 2010), ainda faz da suas como roteirista e compositor.

O grito do mar na noite

     São dez contos reunidos no livro, dez viagens tormentosas, dez estalidos morais, a se multiplicarem pela sensibilidade do leitor. Narrativas hodiernas, prenhes de agitação e desvãos. Personagens que brotam das baladas, da malhação e do estupor da madeira antiga emoldurada pelo cristal líquido. O que rasga o ventre da noite é mais que um grito. Nada mais violento que o abandono familiar, nada mais cruel que o tédio no batidão, nada mais triste que o sexo como solução final, nada mais excitante que uma existência dupla. A dor no final do percurso, a morte no outro lado da linha, o poste a ser beijado na madrugada. Patricinhas, putas e travecos; saradões, empresários e adoentados; aqui nesta Soterópolis reinam todos os circos e palhaços e assassinos, de todos os muitos sexos. Mirdad os reúne em seu livro e revela em detalhes seus fragorosos destinos, nem sempre tristes, nem sempre melancólicos, nem sempre gozosos. Mas sempre como um grito que o vento frio nos traz do mar no meio da noite.       
    

domingo, 14 de junho de 2015

DE UM RECANTO


de um recanto
assoprado
voam partículas
em direção vária
até pousarem
em outro recanto
inda intocado

assim disparam
memórias minhas
brilhantes, anímicas,
que tento reter num canto
até se me escaparem
na silenciosa penumbra
do inacabado

sábado, 30 de maio de 2015

JÚLIO CÉSAR, WILLIAM SHAKESPEARE

ATO III, CENA II, início do discurso de Marco Antônio no funeral de Júlio César.

ANTÔNIO - Concidadãos, romanos, bons amigos,
concedei-me atenção. Vim para o enterro
fazer de Cesar, não para elogiá-lo.
Aos homens sobrevive o mal que fazem,
mas o bem quase sempre com seus ossos
fica enterrado. Seja assim com César.
O nobre Bruto vos contou que César
era ambicioso. Se ele o foi, realmente,
grave falta era a sua, tendo-a César
gravemente expiado. Aqui me encontro
por permissão de Bruto e dos restantes -
Bruto é homem honrado, como os outros;
todos, homens honrados - aqui me acho
para falar nos funerais de César.
César foi meu amigo, fiel e justo;
mas Bruto disse que ele era ambicioso,
e Bruto é muito honrado. César trouxe
numerosos cativos para Roma,
cujos resgates o tesouro encheram.
Nisso se mostrou César ambicioso?
Para os gritos dos pobres tinha lágrimas.
A ambição deve ser de algo mais duro.
Mas Bruto disse que ele era ambicioso,
e Bruto é muito honrado. Vós os vistes
nas Lupercais: três vezes recusou-se
a aceitar a coroa que eu lhe dava.
Ambição será isso? No entretanto,
Bruto disse que ele era ambicioso,
sendo certo que Bruto é muito honrado.
Contestar não pretendo o nobre Bruto;
só vim dizer-vos o que sei, realmente.
Todos antes o amáveis, não sem causa.
Que é então que vos impede de chorá-lo?
Ó julgamento! Foste para o meio
dos brutos animais, tendo os humanos
o uso perdido da razão. Perdoai-me;
mas tenho o coração, neste momento,
no ataúde de César; é preciso
calar até que ao peito ele me volte.


Adiante, Marco Antônio mostrará aos presentes os furos que as espadas fizeram na túnica de César e relaciona-os com cada um dos traidores, carregando nas tintas com Bruto. E diz do testamento de César, que deixou dracmas e seus bens para o povo de Roma. Discurso comovente, argumentação brilhante, em seus detalhes sangrentos, versos definitivos.
No início deste Ato III, na Cena I, a primeira fala é de César. Fala/reflexão/verso que entra para a história da literatura: "Chegaram os idos de março".
Extraí o trecho do vol. IX das Obras Completas, que aqui tenho, da editora Melhoramentos, em 2a. edição, dos anos 1950, ainda em bom estado. A tradução é de Carlos Alberto Nunes.

domingo, 24 de maio de 2015

METAMORFOSES DO CRAVO, RAFAEL ALBERTI


A pomba se equivocou.
Se equivocava.
Quis ir pro norte foi pro sul.
Pensou que o trigo era água.
Se equivocava.
E que as estrelas eram orvalho;
que o calor era nevada.
Se equivocava.
Que tua saia, sua blusa;
teu coração, sua casa.
Se equivocava.
(Ela adormeceu na praia;
Tu na ramagem mais alta).



Extraído de O prazer do poema, uma antologia pessoal, de Ferreira Gullar, tradução do próprio antologista, publicado pelas Edições de Janeiro, RJ, 2014.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

DÁ A SURPRESA DE SER, FERNANDO PESSOA



Dá a surpresa de ser.  
É alta, de um louro escuro.  
Faz bem só pensar em ver  
Seu corpo meio maduro. 

Seus seios altos parecem  
(Se ela tivesse deitada)  
Dois montinhos que amanhecem  
Sem Ter que haver madrugada. 

E a mão do seu braço branco  
Assenta em palmo espalhado  
Sobre a saliência do flanco  
Do seu relevo tapado. 

Apetece como um barco.  
Tem qualquer coisa de gomo.  
Meu Deus, quando é que eu embarco?  
Ó fome, quando é que eu como ?



Extraído de  "Cancioneiro", edição eletrônica de domínio público, Ciberfil Literatura Digital. 

sábado, 9 de maio de 2015

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


DATA
      
         (à maneira d'Eustache Deschamps)


Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo que mata quem o denuncia
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rasto
Tempo de ameaça



A propósito do nosso tempo, este poema da estupenda poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, extraído de "Poemas Escolhidos", editado aqui pela Cia das Letras, em 2004.

domingo, 3 de maio de 2015

LIVROS PESAM APENAS NA ALMA



Livros pesam apenas na alma.
Há quem os considere um estorvo no ambiente.
Quem reduziu sua presença no lar a uns dois ou três exemplares.
Quem os prefira agora virtuais.
Quem os considere pesados ao bolso.
Ou mesmo quem reclame do peso deles na sacola.
Não eu.
Compro aqueles que me cabem, não me apresso.
Renovo edições na medida do possível.
Loto com eles estantes, caixas e mesas e mesinhas.
Muitos, presentes de minha amada.
Quero mais, não me nego a seu cheiro de tinta, ao manuseio.
Tenho as três edições brasileiras do "Ulisses", de Joyce.
Tenho as duas edições em português do "Infinite Jest", de D. F. Wallace.
Tenho toda a obra de Shakespeare numa edição da Melhoramentos, dos anos 1950.
Ou eles me têm, para ser mais preciso.
Como deve ser.
Livros pesam apenas na alma.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

O QUE ENVELHECE



envelhece tudo
que repousa sem o devido desgaste

até mesmo
o tesouro que se amealha em cofre

envelhece o trono
e o sono dos inocentes

e envelhece principalmente
uma ideia que nos prenda a um poste
feito cavalo na frente de um saloon



sexta-feira, 17 de abril de 2015

DEZ ANOS HOJE


seus miúdos olhos ainda buscam os meus
que se desesperam
por entender aquele pouco brilho

quanta dor se pode suportar em silêncio?

garanti a meu pai minha companhia
até o último momento

meu pai apreciava o cumprimento de compromisso

hoje penso que se divertia
ao me ouvir murmurar: 
- não tenha medo, estou aqui

pois era aquela frase que seus olhos me diziam



quarta-feira, 15 de abril de 2015

O QUE PARTE


O percurso até o fim da linha se faz de garupa.
Há natural confiança no piloto ao se montar.
Trajeto combinado previamente.
O piloto, experiente, garante boa viagem.
Estrada boa, dificuldades previsíveis.
Assim se dá a partida.

O percurso até o fim da linha sofre alterações.
O piloto decide por trechos alternativos;
faz paradas não previstas; negócios particulares.
A viagem passa a apresentar riscos ao garupeiro.
Dificuldades imprevistas, manobras perigosas.
Na garupa, o viajante se mantém firme.
E calado.

Alertas na estrada.
Paradas na polícia.
Multas e avisos de cobrança.
O destino torna-se duvidoso.
Viajante a reboque do piloto.
E calado. Apêndice.

sábado, 11 de abril de 2015

O QUE ACONTECE


acontece que tudo parece derreter
em torno d'alma 
em lama

nenhuma cláusula pétrea resistirá
ao que assim acontece
entorno

ditadura em democracia
exército em movimento
corrupção contratada
burguês contra burguesia
discurso em bravatês
mentira oficial por ofício
internacionalização tardia
realidade em propaganda
roubo em expropriação
poder em esquizofrenia

tudo parece se dissolver
numa nova constituição
física

oleodúctil
doleuróssil
ourovalórica
mochilábil
fundeável
partibandística

acontece que nada pode revogar
leis naturais
nem mesmo o que apodrece
nos círculos infernais

quarta-feira, 1 de abril de 2015

O QUE INQUIETA


tudo que acontece
para lá do meu alcance
pode me contaminar

daquilo sei quase nada
disso desconheço a fonte,
o lance,
o que se quer plantar

ontem não soube de muito
hoje me engano em ver

a história merece não sei que releitura
nem para mim mesmo
minha história posso mais contar

tomar pé na maionese
do discurso dominante
dicotômico, excludente
antes bem antes do meu sangue jorrar

acordar sozinho
andar sozinho
decidir sozinho
o rumo fora de qualquer cerca

e principalmente
permanecer vadio
subversivo
a inquietar aquilo e quem me acossa


terça-feira, 24 de março de 2015

O AMOR EM VISITA, HERBERTO HELDER

[...]
Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho,
no mosto aberto
- no amor mais terrível do que a vida.

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa e madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras.
Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável - 
em cada espasmo eu morrerei contigo.

E à alegria diurna descem as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.


Trecho final do poema "O amor em visita", de Herberto Helder, poeta português nascido em Funchal, na ilha da Madeira, em 1930, e morto ontem, dia 23.03, em Cascais, de causas ainda não divulgadas. A cerimônia fúnebre acontecerá amanhã, quarta-feira.

Considerado por especialistas como o mais expressivo poeta português da segunda metade do século XX, teve publicado no Brasil, pela editora A Girafa, o volume "Ou o poema contínuo", que reúne vários dos seus livros de poesia. Ano passado saiu seu último livro, "A morte sem mestre", pela Porto Editora; meu amigo Mário Vieira procurou por um exemplar em Lisboa, no começo do ano, e não encontrou para me trazer: a edição esgotou rapidamente. Mas me trouxe um exemplar de "Os passos em volta", uma prosa autobiográfica publicada em capa dura pela Assírio&Alvim.

Tenho uma admiração plena pelo derramamento lírico de Herberto Helder. Seus poemas longos não se confundem com o palavroso, é muito mais generosidade do criador a entrega ao leitor de sua visão particular e emocionada do mundo e da gente no mundo à procura do que, no mais das vezes, desconhece. Uma tristeza enorme por mais essa perda da literatura. Mas Herberto Helder está posto entre os grandes, os clássicos, os imortais da língua portuguesa. Sua poesia é viva, pulsante e se renova a cada leitura. O poema "O amor em visita" jamais se esgotará e dele sempre brota uma luz e uma emoção renovadas. HH era chamado de "o poeta dos poetas". Que seus livros todos sejam cada vez mais lidos.

quarta-feira, 18 de março de 2015

MINHA MÃE SE MATOU SEM DIZER ADEUS, EVANDRO AFFONSO FERREIRA



A vida é ruim; eu sei; e sem possibilidades vindouras.

Esse é o tom da narrativa que Evandro Affonso Ferreira nos entrega em seu "Minha mãe se matou sem dizer adeus". Um escritor octagenário se posta em uma mesa-mirante de uma confeitaria para escrever seu último livro. É domingo e chove muito, como nos lembra a cada início de capítulo. A conversa telepática que mantém com outros frequentadores do lugar permite uma exploração erudita da viagem humana na tarefa de viver desde tempos idos. E, também, aflorar certas verdades que falas e gestos convencionais teimam em esconder. A vida acontece dentro, talvez assim esclarecesse o narrador.

Estamos descendo desabalados pela ladeira sobre carrinho de rolimã. Minha mãe comigo no colo diz aos gritos que a vida também não tem freio. Ganhei um corte na testa; ela arranhou os braços. Agora aqui nesta mesa-mirante a poucas horas da morte descubro que minha infância não foi ruim: tive mãe-moleque; louca feia bêbada - mas encantadoramente moleque.

Ficam para trás vírgulas e artigos, no mais das vezes, entre outros penduricalhos gramaticais. Surge um ritmo correlato ao estado de ânimo do protagonista, uma pressa controlada, uma certeza de partida que requer cuidados de arrumação minuciosos. A infância revisitada e turva, as perdas, o medo instalado e algumas convicções, não menos turvas, dão substância ao texto.

Escritor-inconcluso. Com o tempo fui aperfeiçoando-me no oficio da inconclusão. Hoje sei não terminar um livro no momento oportuno. Aquele escritor judeu de Praga era exímio não concluidor de textos. Dependendo do último parágrafo digo de súbito para mim mesmo: aqui está perfeito para não ser concluído.  

Autor de "Grogotó", "Araã!",  "Zaratempô!", "Catrâmbias", entre outros, Evandro Affonso Ferreira me tem sido recomendado faz tempo pelo escritor Ronaldo Cagiano. Ontem, comecei com esse "Minha mãe...", enquanto fazia exames oftalmológicos. A dilatação de pupila não me impediu de avançar na leitura, que concluí hoje. Isso porque conquistado pela proposta, envolvido pela prosa rica e inovadora, desejei não concluir a leitura que se mostrou sempre cativante e enriquecedora. A vida pode ser, sim, muito ruim. A gente até que sabe disso. Mas há certas garçonetes ruivas e aquelas possibilidades extremas do sábado que tornam qualquer dor suportável. 

[...] não se mate, meu velho, não se mate; pense na possibilidade decepcionante do café lá do outro mundo não ser assim tão encorpado.




"Minha mãe se matou sem dizer adeus", de Evandro Affonso Ferreira, Editora Record, 2010, RJ.

sábado, 7 de março de 2015

O IRMÃO ALEMÃO, CHICO BUARQUE



     O texto da orelha diz que Chico Buarque escreveu "o romance de sua vida". A afirmação permite, claro, dupla leitura: uma autobiografia e o melhor livro escrito por ele. É autobiográfico, sim, mas não chega a ser uma autobiografia, pois centrado em um episódio familiar e seus desdobramentos. Mas é, no meu entender, o romance de maior valor artístico escrito pelo autor multimídia. E, por isso mesmo, candidato natural a vencer todos os prêmios literários do ano. 
    Obra de ficção a partir de fato real, "O irmão alemão" tem tutano. Distante de ser um mero exercício intelectual, uma demonstração da genialidade de Chico Buarque, como foram tratados livros anteriores do autor, esse romance é uma narrativa com as marcas inconfundíveis da boa literatura. Os delírios do protagonista, na busca de um até então desconhecido irmão germânico, resulta em páginas de leitura deliciosa e que configuram com competência o perfil psicológico do personagem e o momento sócio-político em que vivia. Enquanto avança em sua investigação, o mundo dos livros, materializado pela estupenda biblioteca do pai, adquire papel fundamental na história que é contada. Dentro dos livros estão as pistas do mistério familiar. Vivo ou morto, em que país ou cidade, em que profissão, qual sua aparência, suas preferências, seu tom de voz, tudo isso motiva a escrita fantasiosa e rica do autor/protagonista.
     Sim, Sérgio Buarque de Hollanda, pai do autor, morou em Berlim entre 1929/30, teve um caso amoroso com uma alemã, que lá deixou grávida. Sim, houve uma carta da jovem alemã, Anne, falando do filho, do mesmo nome do pai. Sim, houve correspondências trocadas entre o governo alemão e o intelectual brasileiro para tratar do destino da criança.  Tudo isso é fato e reproduções desses documentos são expostas no livro. Chico Buarque foi até a Alemanha procurar o irmão, sim. Mas "O irmão alemão" é obra de ficção acabada e das melhores que li ultimamente.
    Os Hollander do livro são quatro: pai (Sérgio) e mãe (Assunta), dois filhos (Domingos, o Mimmo, e Francisco, o Ciccio). A ação transcorre dos anos 1960 ao período pós-queda do muro de Berlim, quando Ciccio, agora o professor Hollander, administrador de um blogue que trata de questões da língua portuguesa, vai até a Alemanha procurar o irmão. Mas até alcançar esse ponto, a narrativa expõe a vida estudantil nos duríssimos anos 1960, com os embates de rua e subterrâneos com a polícia da ditadura militar, as diferenças entre os irmãos Hollander, o desaparecimento de Mimmo e, principalmente, as investigações feitas por Ciccio em solo paulista até localizar o pianista pretendente citado por Anne em sua carta.
       Chico Buarque introduz, ainda, em "O irmão alemão", seu famoso senso de humor. Por tudo isso, e muito mais que deixei de fora deste comentário, o romance da vida de Chico oferece leitura prazerosa e enriquecedora. O compositor inigualável da MPB dá um passo enorme para se firmar, de forma inquestionável, como romancista dos mais expressivos na contemporaneidade. Acusado de ser um autor "frio", daqueles que não têm a espada fincada na nuca, Chico Buarque mergulha em sua história e na história da família e extrai uma narrativa prenhe de substância vital, um romance de leitura altamente recomendável.


O irmão alemão, de Chico Buarque, Companhia das Letras, 2014.

terça-feira, 3 de março de 2015

JEITO DE MATAR LAGARTAS, ANTONIO CARLOS VIANA



     Difícil definir qual o melhor conto entre os 27 da coletânea. Pelo menos 15 deles são antológicos. Destaco A muralha da China, Amarelo Klimt, Dona Katucha, Cara de Boneca, Lucy in the sky, Madame Viola..., Um traidor, Missa de sétimo dia, Batatas bravas e o conto que dá título ao livro. São contos repletos de vida e de tudo aquilo com que a vida nos premia: dor e gozo e desespero, com algum laivo de paz e conforto e, ainda, topadas inevitáveis com as garras da maldade. 

     Paulo Henriques Brito alerta, no texto da orelha, para "o traço unificador da obra" de Viana, sua temática: "pode-se dizer que todos os seus contos giram em torno do corpo e de suas vicissitudes. Ainda que o tema seja abordado por diversos ângulos, o que mais intriga o autor são seus dois pontos extremos - o corpo como mistério (infância) e como ruína (velhice)." Em Jeito de matar lagartas ganham espaço e destaque as narrativas centradas na decadência física e nas angústias que assaltam inevitavelmente quem envelhece. Brito afirma que Viana mantém "o mesmo olhar crítico e afiado, impiedoso mas profundamente humano".

     Isso significa que Jeito de matar lagartas, do sergipano Antonio Carlos Viana, avança um pouco mais o padrão de qualidade literária dos livros anteriores do autor. Quem tremeu ou se arrepiou ao ler Cine Privé, de 2009, vai encontrar neste novo livro personagens e circunstâncias singulares, daquelas inesquecíveis pela grandiosidade de sua miséria, horror e grandeza humanos. No popular: a pegada é forte, sem meios termos, na melhor linhagem dos ficcionistas ocupados em materializar sua arte sem aliviar a barra para nenhum dos envolvidos, em especial, o leitor. A linguagem segue exata, sem excessos, crua e comprometida com o que é narrado. Como diria minha mãe, Antonio Carlos Viana não alisa.

Trecho: "Era um meio de tarde de junho, um dia depois do São João, as cinzas das fogueiras ainda fumegando, o cheiro bom de pólvora no ar. Eu já sabia o que significava aquele bando de meninos em fila, esperando a vez para se esfregar nas coxas de seu Lilá. O muro do cemitério onde ele se apoiava já tinha até as marcas de suas mãos. Os meninos iam um por um, baixavam os calções, se esfregavam nele e só. Cada um levava umas folhas de mamoneira para limpar a sujeira que o outro tinha deixado e se esfregava do mesmo jeito, ensebando mais uma vez as coxas de seu Lilá, que não gemia, que não dizia nada. Também era só isso que ele permitia. Um ou outro queria ir mais longe, mas ele não deixava. Via-se que ele tinha alma bondosa, era como se sacrificasse em nome de alguma coisa que serviria mais para nossas vidas que para a dele." (Cara de boneca).

Jeito de matar lagartas, Antonio Carlos Viana, Companhia das Letras, 1a. edição, 2015.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

CONSTERNAÇÃO, JÁDSON BARROS NEVES



    Um livro de contos que nos revela o mundo dos posseiros, garimpeiros, fazendeiros e bichos de todo porte e peçonha, que habitam, ou transitam, pela selva brasileira. Ou pelo que foi selva, um dia. Homens e mulheres que labutam no limite de sua capacidade de sobrevivência e que, mesmo assim, não desaprendem amizade e amor.
    O que mais me agradou no conjunto dos contos foi o conteúdo de verdade que brota da leitura. O leitor enfrenta ao lado dos personagens o calor, as mutucas, a chuvarada constante, e por pouco não sai do livro sangrando por conta de uma afiada faca de picar fumo ou por uma bala de 44.
     Jádson Neves conhece o mundo que narra. Isso, por si só, não é garantia de boa literatura, mas em "Consternação" verifica-se facilmente ser a base das narrativas. E o sumo da linguagem certeira, sem garranchos a atrapalhar a viagem do leitor. 
     "Consternação" me foi indicado pelo escritor Roniwalter Jatobá, em nosso mais recente encontro, como um livro de valor, que merecia ser lido. Nesse rescaldo de carnaval, fundi o ouro em pó dos contos e o desvario da aventura humana com o sangue que inevitavelmente se derrama ao viver e morrer em terras brasílicas. E entrego aqui a vocês minha recomendação de leitura. 



Consternação, de Jádson Barros Neves, saiu pela editora baiana Casarão do Verbo, em 2013, e reúne 14 contos em 184 páginas.
Imagem: Bol Fotos.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

O REI DE AMARELO, ROBERT W. CHAMBERS


DESTINO

     Cheguei à ponte pela qual poucos podem passar.
     - Passe! - gritou o vigia, mas eu ri.
     - Ainda há tempo - retruquei; ele sorriu e fechou os portões.
     À ponte pela qual poucos podem passar chegavam jovens e velhos. Todos foram barrados. Fiquei ali à toa e os contei, até que, cansado do barulho e das lamentações, voltei à ponte pela qual poucos podem passar.
     - Ele chega tarde demais! - gritaram os que estavam na multidão diante dos portões.
     - Ainda há tempo - retruquei.
     - Passe! - gritou o vigia quando entrei; então ele sorriu e fechou os portões.


"Destino" é o quarto fragmento do conto "O paraíso do profeta", que integra o livro "O rei de amarelo", de Robert W. Chambers. Publicado pela Intrínseca, em 2014, com tradução de Edmundo Barreiros e comentado por Carlos Orsi. O texto original data de 1895 e é considerado um marco da literatura fantástica, inspirada em Wilde e Baudelaire, e inspiradora de gerações posteriores de autores da ficção de terror e científica.
"O rei de amarelo" reúne dez contos em duas partes distintas. A primeira, composta por cinco contos, tem como referência o livro fictício do mesmo nome que possuía o condão de escandalizar e mudar para sempre a vida das pessoas que o liam. Citações e personagens se repetem nos contos, criando uma mitologia própria (Carcosa, Harbus, Hali).
O conto "O paraíso do profeta", o sexto da coletânea, é uma reunião de minicontos, ou poemas em prosa, separa as duas partes do livro. A segunda parte é composta por quatro contos, conhecidos como "quarteto das ruas", tendo Paris como cenário.
Leitura impressionante, recomendável.
O exemplar que leio me foi presenteado por Ruy Espinheira Filho, em meu aniversário do ano passado. Ainda há tempo.

domingo, 11 de janeiro de 2015

O QUE SONHA


o que sonha
no pesado sono noturno
escapa ao amanhecer
feito urina turva
tragada pelo vórtice da descarga

o que sonha
no agitado sono diurno
escorre no suor
que respinga no piso empoeirado
do lugar antigo que habita

o que sonha
acordado
ladeia seus atos
feito cão faminto
tratado a pontapés

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

O QUE SOBRA



O que sobra em sua vida
pode abrir a manhã em duas

conferir sabor a maçã
do rosto da Madona
de cedro na sala

O que sobra em sua vida
deve temperar a noite

dourar o dorso das carícias
faltas às suas mãos
feridas pela solidão

O que sobra em sua vida
cabe bem no braseiro

aceso debaixo do viaduto
facho e farol de dores
dissabores e abandonos

O que sobra em sua vida
são alertas