Difícil definir qual o melhor conto entre os 27 da coletânea. Pelo menos 15 deles são antológicos. Destaco A muralha da China, Amarelo Klimt, Dona Katucha, Cara de Boneca, Lucy in the sky, Madame Viola..., Um traidor, Missa de sétimo dia, Batatas bravas e o conto que dá título ao livro. São contos repletos de vida e de tudo aquilo com que a vida nos premia: dor e gozo e desespero, com algum laivo de paz e conforto e, ainda, topadas inevitáveis com as garras da maldade.
Paulo Henriques Brito alerta, no texto da orelha, para "o traço unificador da obra" de Viana, sua temática: "pode-se dizer que todos os seus contos giram em torno do corpo e de suas vicissitudes. Ainda que o tema seja abordado por diversos ângulos, o que mais intriga o autor são seus dois pontos extremos - o corpo como mistério (infância) e como ruína (velhice)." Em Jeito de matar lagartas ganham espaço e destaque as narrativas centradas na decadência física e nas angústias que assaltam inevitavelmente quem envelhece. Brito afirma que Viana mantém "o mesmo olhar crítico e afiado, impiedoso mas profundamente humano".
Isso significa que Jeito de matar lagartas, do sergipano Antonio Carlos Viana, avança um pouco mais o padrão de qualidade literária dos livros anteriores do autor. Quem tremeu ou se arrepiou ao ler Cine Privé, de 2009, vai encontrar neste novo livro personagens e circunstâncias singulares, daquelas inesquecíveis pela grandiosidade de sua miséria, horror e grandeza humanos. No popular: a pegada é forte, sem meios termos, na melhor linhagem dos ficcionistas ocupados em materializar sua arte sem aliviar a barra para nenhum dos envolvidos, em especial, o leitor. A linguagem segue exata, sem excessos, crua e comprometida com o que é narrado. Como diria minha mãe, Antonio Carlos Viana não alisa.
Trecho: "Era um meio de tarde de junho, um dia depois do São João, as cinzas das fogueiras ainda fumegando, o cheiro bom de pólvora no ar. Eu já sabia o que significava aquele bando de meninos em fila, esperando a vez para se esfregar nas coxas de seu Lilá. O muro do cemitério onde ele se apoiava já tinha até as marcas de suas mãos. Os meninos iam um por um, baixavam os calções, se esfregavam nele e só. Cada um levava umas folhas de mamoneira para limpar a sujeira que o outro tinha deixado e se esfregava do mesmo jeito, ensebando mais uma vez as coxas de seu Lilá, que não gemia, que não dizia nada. Também era só isso que ele permitia. Um ou outro queria ir mais longe, mas ele não deixava. Via-se que ele tinha alma bondosa, era como se sacrificasse em nome de alguma coisa que serviria mais para nossas vidas que para a dele." (Cara de boneca).
Jeito de matar lagartas, Antonio Carlos Viana, Companhia das Letras, 1a. edição, 2015.
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