quarta-feira, 18 de março de 2015

MINHA MÃE SE MATOU SEM DIZER ADEUS, EVANDRO AFFONSO FERREIRA



A vida é ruim; eu sei; e sem possibilidades vindouras.

Esse é o tom da narrativa que Evandro Affonso Ferreira nos entrega em seu "Minha mãe se matou sem dizer adeus". Um escritor octagenário se posta em uma mesa-mirante de uma confeitaria para escrever seu último livro. É domingo e chove muito, como nos lembra a cada início de capítulo. A conversa telepática que mantém com outros frequentadores do lugar permite uma exploração erudita da viagem humana na tarefa de viver desde tempos idos. E, também, aflorar certas verdades que falas e gestos convencionais teimam em esconder. A vida acontece dentro, talvez assim esclarecesse o narrador.

Estamos descendo desabalados pela ladeira sobre carrinho de rolimã. Minha mãe comigo no colo diz aos gritos que a vida também não tem freio. Ganhei um corte na testa; ela arranhou os braços. Agora aqui nesta mesa-mirante a poucas horas da morte descubro que minha infância não foi ruim: tive mãe-moleque; louca feia bêbada - mas encantadoramente moleque.

Ficam para trás vírgulas e artigos, no mais das vezes, entre outros penduricalhos gramaticais. Surge um ritmo correlato ao estado de ânimo do protagonista, uma pressa controlada, uma certeza de partida que requer cuidados de arrumação minuciosos. A infância revisitada e turva, as perdas, o medo instalado e algumas convicções, não menos turvas, dão substância ao texto.

Escritor-inconcluso. Com o tempo fui aperfeiçoando-me no oficio da inconclusão. Hoje sei não terminar um livro no momento oportuno. Aquele escritor judeu de Praga era exímio não concluidor de textos. Dependendo do último parágrafo digo de súbito para mim mesmo: aqui está perfeito para não ser concluído.  

Autor de "Grogotó", "Araã!",  "Zaratempô!", "Catrâmbias", entre outros, Evandro Affonso Ferreira me tem sido recomendado faz tempo pelo escritor Ronaldo Cagiano. Ontem, comecei com esse "Minha mãe...", enquanto fazia exames oftalmológicos. A dilatação de pupila não me impediu de avançar na leitura, que concluí hoje. Isso porque conquistado pela proposta, envolvido pela prosa rica e inovadora, desejei não concluir a leitura que se mostrou sempre cativante e enriquecedora. A vida pode ser, sim, muito ruim. A gente até que sabe disso. Mas há certas garçonetes ruivas e aquelas possibilidades extremas do sábado que tornam qualquer dor suportável. 

[...] não se mate, meu velho, não se mate; pense na possibilidade decepcionante do café lá do outro mundo não ser assim tão encorpado.




"Minha mãe se matou sem dizer adeus", de Evandro Affonso Ferreira, Editora Record, 2010, RJ.

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