sexta-feira, 30 de outubro de 2015

SONETO DAS MOÇAS DE ANTIGAMENTE



Elas eram bonitas de doer.
À tarde passeavam no jardim.
Cintilavam nas festas e em mim,
que as sofria até quase morrer.

Elas eram bonitas de fazer
chorar o coração... E sempre em mim
davam bailes cruéis. Eram assim,
e eu nunca me furtava a esse sofrer

por seus olhos, seus rostos, seus joelhos,
que mágicos tornavam os espelhos
todos. Eram assim. E eis que esse encanto

persiste. E eu agradeço, ainda encantado,
por lhes dever, antes e agora, o fado
de ser feliz por ter sofrido tanto.


Extraído do novo livro de poemas de Ruy Espinheira Filho, Noite Alta, editora Patuá, SP, 2015.

domingo, 25 de outubro de 2015

MR. HOLMES



  Um Sherlock Holmes de 93 anos de idade será sempre um detetive de mente acurada, mesmo que a memória já não seja a mesma. Ian McKellen serve como uma luva (aliás, peça importante na trama) ao papel. Laura Linney, contraponto de Holmes como sua governanta, constrói muito bem a face emocional e impulsiva do conto. E Milo Parker, filho da governanta, açoitado por essas duas forças, faz a projeção do espectador aprendiz e atilado.
  
  Recolhido a uma casa no interior, cuidando de um apiário e manipulando poções em seu laboratório, Holmes luta contra os efeitos da senilidade. Um homem que se aproxima do fim de sua existência e que de repente não se lembra mais dos detalhes do seu último caso. Justo o caso que motivou seu afastamento da profissão e do convívio social. Sem Watson a seu lado, o velho Holmes resolve escrever para lembrar, escrever para acertar contas consigo mesmo.
  
  O garoto estimula o mestre, que avança em sua escrita/relembrança aos tropeços. O filme trata de perdas: de memória, partes de si mesmo que se apagam como lâmpadas em cômodos diversos, de possibilidades afetivas, linhas de vida que se fecharam por medo e insegurança, de potência vital, debilidades físicas que se avolumam com o envelhecimento. Perdas que uma mente poderosa não aceita como definitivas. O filme nos mostra, com lirismo e drama, que as perdas de uma vida podem ser sempre compensadas antes de partir. E que nas vidas banais pulsam o que mais importa: companheirismo, amor, trabalho.
  
  Mr. Holmes é um desses filmes que nos pegam pela mão e nos levam a um território muito especial, o da emoção elaborada com elegância e profundidade. Não é à toa que a história começa com Mr. Holmes retornando do Japão agarrado a um pacote precioso.
 

terça-feira, 13 de outubro de 2015

KARL OVE KNAUSGARD, A MORTE DO PAI


 
   [...] Quando sabemos muito pouco, é como se esse pouco não existisse. Quando sabemos muito, é como se esse muito não existisse. Escrever é retirar da sombra a essência do que sabemos. É disso que a escrita se ocupa. Não do que acontece aí, não das ações que se praticam aí, mas do em si. Aí,  é esse o lugar e o propósito da escrita. Mas como chegar a ele?
 
   [...] Por muitos anos eu tentara escrever sobre meu pai, mas jamais conseguira, decerto porque o tema era próximo demais da minha vida, e portanto nada fácil de transpor para outra forma, o que, naturalmente, é um pré-requisito da literatura. É sua única lei: tudo deve se sujeitar à forma, como o estilo, a trama, o tema, se algum deles prevalecer sobre a forma, o resultado será insatisfatório. Eis por que autores com estilo forte costumam escrever livros ruins. E também por que autores com temas fortes costumam escrever livros ruins. A força do tema e do estilo deve ser destruída para que possa surgir a literatura. É a essa destruição que chamamos "escrever". Escrever é mais destruir do que criar. Rimbaud sabia disso melhor que ninguém.
 
 
 
   Trechos extraídos de "A morte do pai", vol. I da trilogia "Minha luta", de Karl Ove Knausgard, publicado pela Companhia das Letras, em 2a. edição, 2015.