quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

NOSSO DIA




Este dia será sempre o dia
em que perdemos a pose
entregues ao brinquedo
a descoberta do novo mundo

Este dia será o dia da festa
encadernada em capa dura
que alerta desvelaremos
entregues ao brinquedo poesia

Este o dia do nosso mundo
que estendemos no quarador
para revestir riso e gozo depois
durante nosso eterno dia




Imagem: Bol Imagens

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

UM CONTO DE JOHN CHEEVER

Foi uma bela tarde. Havia nuvens de neve, mas elas eram trespassadas por uma luz viva e contagiante. A paisagem vista do topo do morro era preta e branca. As cores que tinha eram as cores de um incêndio apagado e isso causava uma certa impressão - como se a desolação não se devesse apenas ao inverno, mas fosse o resultado de uma grande conflagração. As pessoas conversam, obviamente, enquanto esquiam, enquanto aguardam a sua vez de agarrar a corda, mas elas dificilmente se ouvem. Há o escapamento do motor, o ranger da roda de ferro por onde passa a corda, mas os próprios esquiadores parecem meio lesados, perdidos no ritmo de subir e deslizar. Aquela tarde foi um ciclo contínuo de movimento. Havia uma fila única, à esquerda da rampa, de pessoas que se prendiam à corda gasta e a soltavam, uma por uma, no topo do morro para escolher o caminho a descer, percorrendo de novo e de novo a mesma superfície como alguém que, tendo perdido um anel ou uma chave na praia, vasculha a mesma porção de areia repetidas vezes. Nessa placidez, a pequena Anne começou a gritar. Seu braço tinha ficado preso na velha corda: ela havia sido arremessada ao chão e estava sendo arrastada brutalmente morro acima em direção à roda de ferro. "Parem o reboque!", berrou o pai. "Parem o reboque! Parem o reboque!" E todo mundo que estava no morro começou a gritar: "Parem o reboque! Parem o reboque!" Mas não havia ninguém para fazê-lo parar. Os gritos dela eram roucos e terríveis e, quanto mais ela lutava para se livrar da corda, com mais força era arremessada ao chão. O espaço e o frio pareciam diminuir as vozes - e até mesmo a aflição nas vozes - das pessoas que estavam berrando para que alguém parasse o reboque, mas os gritos da menina continuaram soando, penetrantes, até seu pescoço quebrar na roda de ferro.



Nada precisa ser dito da literatura de Cheever após a leitura desse parágrafo, extraído do conto "Os Hartley", traduzido por Daniel Galera, que integra o livro "28 contos de John Cheever", publicado pela Cia das Letras, 2010.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

NOVA ORDEM

O novo padre baixou a norma:
- Em minha igreja não entra mais gente morta! Nada mais de missa de corpo presente!
O povo do lugar atendeu o seu desejo: o padre foi o primeiro a ser assim enterrado.

sábado, 8 de janeiro de 2011

PONTO DE CONVERGÊNCIA

Você deixa pra ir ao supermercado à noite. Sai de casa depois das 22h, acreditando no trânsito leve e na ausência de fila no caixa. Você tem seu ritmo, foge do estresse o mais que pode. Então, vai às compras com esse espírito. E assim se aproxima do Bom Preço da Pituba.

Parece que há um caminhão baú estacionado, você reduz a marcha, a entrada da garagem fica bem ali... pronto, o caminhão praticamente fechava a entrada e você passou do ponto. O jeito é encostar adiante e dar ré. São 22:30h, a manobra deve ser fácil, o trecho é curto.

Mas um outro automóvel encostou na traseira do seu carro e a ré fica impraticável. Você adianta seu carro um pouco mais, já irritado. Pensa então que o outro sujeito também perdeu a entrada e quer fazer o mesmo que você, encostar e dar ré. Mas, não. Sua irritação aumenta quando o sujeito simplesmente faz uma manobra e se afasta. O palavrão brota repentino: "Filho da puta! Tinha a rua toda livre! Que merda queria colando no meu carro?" Bem, talvez você tenha se livrado de um assalto... nem mesmo esse pensamento alivia a tensão.

Com a ré engatada, já acelerando, você ouve uma buzina. A traseira do seu carro está indo ao encontro de um carro que está saindo da garagem. É, a saída fica junto da entrada. Outro palavrão, quase houve uma batida, você desfaz a manobra, avança para dar passagem, volta a engatar a ré. Mas agora é o caminhão baú que se move para sair. E mais uma vez você não consegue dar a maldita ré e acessar a garagem do supermercado. O caminhão se move lenta e pesadamente até se desgrudar da calçada e desaparecer na esquina. Tudo isso às 22:40h, quase onze da noite.

E de repente você está sozinho na rua. Chega a duvidar. Verifica repetidas vezes o retrovisor lateral, o interno, até dar a desgraçada da ré, com receios de atropelar fantasmas.

Ao estacionar na garagem do supermercado você já está exausto.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

TRISTRAM SHANDY

Pudesse um historiógrafo tocar para diante a sua história, como um arrieiro toca a sua mula, - sempre em frente; - por exemplo, de Roma até Loreto, sem jamais voltar a cabeça quer para a direita, quer para a esquerda, - e teria condições de aventurar-se a dizer-vos, com uma hora de erro para mais ou para menos, quando alcançará o termo de sua jornada; - mas tal coisa é, moralmente falando, impossível. Se for um homem com um mínimo de espírito, terá de fazer cinqüenta desvios da linha reta a fim de atender a esta ou aquela pessoa conforme for prosseguindo, o que de maneira alguma poderá evitar. Terá sempre a solicitar-lhe a atenção, vistas e perspectivas que não poderá evitar de parar para ver, tanto quanto não pode alçar vôo; terá, além disso, diversos
relatos a conciliar;
anedotas a recolher;
inscrições a decifrar;
histórias a entretecer;
tradições a peneirar;
personagens a visitar;
panegíricos a afixar à porta;
pasquinadas por sua causa: - De tudo isso, tanto o homem quanto a sua mula estão isentos. Para resumir a questão: a cada passo, há arquivos a consultar, bem como pergaminhos, registros, documentos e infindáveis genealogias, que a justiça uma e outra vez o obriga a voltar a ler. - Em suma, a coisa não tem fim; ------ de minha parte, declaro ter dedicado a isso estas últimas seis semanas, imprimindo-lhe toda a velocidade que me foi possível, - e ainda nem sequer nasci; -- só consegui dizer-vos, e foi tudo, quando aconteceu, mas não como; ----- pelo que, como vedes, a coisa ainda está longe de se concluir.



Trecho do Volume I de "A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy", de Laurence Sterne, publicado originalmente em 1760. Os nove volumes publicados até 1767, dos 20 projetados pelo autor, foram reunidos pela Cia das Letras, com tradução e prefácio de José Paulo Paes, em 1998 (2a. edição corrigida). Os hífens do texto substituem travessões, mais ou menos longos, à exceção das ocorrências em sequência. As extravagâncias de Sterne (gráficas, digressivas e humorísticas) me encantam como leitor. Volto sempre ao Tristram Shandy quando suspenso por ausências.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

CARVER

Li dois contos de Carver hoje à tarde. Não dá para ler mais que dois contos por vez. Falta chão e a vida fica turva quando se lê Carver. A gente sabe que a vida é turva, mas Carver prova que é. Editado e traduzido, não importa, o que nos chega de Carver parece um jogo de polo equestre: uma bola é tangida por tacos grotescos, num campo imenso, por jogadores que se confundem com as montarias - o espectador sabe que há uma partida em andamento, mas não entende bem qual lado ataca, qual lado defende; mal vê a bola, que mais parece um pequeno animal em desespero tentando fuga - e quando acontece o gol não há estufar de rede nem delírio de multidão, restando ao fundo um tropel que não cessa.



"68 contos de Raymond Carver", tradução de Rubens Figueiredo, Cia das Letras, 2010. Os contos citados são "O compartimento" e "Uma coisinha boa".

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

2011 DE NOVO

E quando a gente o alcança descobre que os dois chuveiros da casa estão imprestáveis. E que você não sabe consertá-los. E que o eletricista só pode vir na terça. E que até lá tome banho frio.
E as dores doem nos mesmos lugares, com intensidade de farois na noite.