quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

UM CONTO DE JOHN CHEEVER

Foi uma bela tarde. Havia nuvens de neve, mas elas eram trespassadas por uma luz viva e contagiante. A paisagem vista do topo do morro era preta e branca. As cores que tinha eram as cores de um incêndio apagado e isso causava uma certa impressão - como se a desolação não se devesse apenas ao inverno, mas fosse o resultado de uma grande conflagração. As pessoas conversam, obviamente, enquanto esquiam, enquanto aguardam a sua vez de agarrar a corda, mas elas dificilmente se ouvem. Há o escapamento do motor, o ranger da roda de ferro por onde passa a corda, mas os próprios esquiadores parecem meio lesados, perdidos no ritmo de subir e deslizar. Aquela tarde foi um ciclo contínuo de movimento. Havia uma fila única, à esquerda da rampa, de pessoas que se prendiam à corda gasta e a soltavam, uma por uma, no topo do morro para escolher o caminho a descer, percorrendo de novo e de novo a mesma superfície como alguém que, tendo perdido um anel ou uma chave na praia, vasculha a mesma porção de areia repetidas vezes. Nessa placidez, a pequena Anne começou a gritar. Seu braço tinha ficado preso na velha corda: ela havia sido arremessada ao chão e estava sendo arrastada brutalmente morro acima em direção à roda de ferro. "Parem o reboque!", berrou o pai. "Parem o reboque! Parem o reboque!" E todo mundo que estava no morro começou a gritar: "Parem o reboque! Parem o reboque!" Mas não havia ninguém para fazê-lo parar. Os gritos dela eram roucos e terríveis e, quanto mais ela lutava para se livrar da corda, com mais força era arremessada ao chão. O espaço e o frio pareciam diminuir as vozes - e até mesmo a aflição nas vozes - das pessoas que estavam berrando para que alguém parasse o reboque, mas os gritos da menina continuaram soando, penetrantes, até seu pescoço quebrar na roda de ferro.



Nada precisa ser dito da literatura de Cheever após a leitura desse parágrafo, extraído do conto "Os Hartley", traduzido por Daniel Galera, que integra o livro "28 contos de John Cheever", publicado pela Cia das Letras, 2010.

3 comentários:

  1. Amo esse conto, você sabe. Bjsamovc

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  2. Desconhecia o contista Cheever. Dele só tenho (li) Até Parece o Paraíso, um pequeno livro (164 págimas) editado pela Cia. das Letras em 1986. Mas que é muito bom.

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