segunda-feira, 30 de novembro de 2015

BORBOLETAS BAIANAS


Tomo conhecimento das borboletas baianas.
Não das que vejo nos jardins, mas daquelas que voejam em casamentos.
Nossas borboletas fazem sucesso em casórios Brasil afora.
Viajam de avião, em caixinhas com furos para ventilação.
As borboletas são exigência de noivas românticas.
Querem com elas embelezar suas histórias de amor.
Mas são caras nossas borboletas, muito caras.
Precisam ser contadas para o devido pagamento.
Para tanto, colocam as caixas por um tempinho em geladeiras.
É que assim as borboletas desmaiam.
E é possível fazer a contagem, business is business.
As caixas são levadas ao pé do altar, onde quer que esteja.
E lá aguardam pelo grande momento, as sobreviventes.
Na saída do novo casal, as borboletas são soltas.
Mas estão fragilizadas, tontas, quase mortas.
Então as cerimonialistas dão o último toque ao show.
Batem nas caixas para espantar as borboletas.
Que se projetam no ar em último arquejo de vida.
Para morrer em seguida em pleno voo.
Ou onde pousarem.
Depois de obterem o aplauso da plateia.
E ares de extremo contentamento dos nubentes.
Aquele batalhão de borboletas baianas.
Borboletas que viajaram de avião e desmaiaram no gelo.
Em suas curtas vidas de tortura e horror.
Para beleza e glória do amor.
Do amor?

sábado, 28 de novembro de 2015

OBVIEDADES BRASILEIRAS


1.   Não há terremoto no Brasil. Nem tsunami. Nem furacão. E recentemente tivemos a garantia presidencial de que estamos livres de atentado terrorista. Deus é brasileiro. Portanto, não há nenhuma necessidade de se preparar ou ter qualquer plano institucional para qualquer tipo de emergência. Para quê? Emergência é emergência, resolve-se com o que tem, do jeito que dá, da maneira que for. Simples, assim. Obviamente, ninguém jamais pensou que uma barragem de rejeitos minerais pudesse se romper...
 
2.   O PT não abandona nem expulsa petista histórico. Vide José Dirceu e Vaccari Neto. Portanto, alguém aí avise a presidente Dilma que, se acontecer a ela a primeira coisa ruim, a segunda será inevitável, dita e certa. Vide André Vargas e Delcídio Amaral.
 
4.   Jaleco branco é símbolo positivo de status. Portanto, fica assim justificado o uso do jaleco pelo bom doutor, ou enfermeiro, ou auxiliar, de qualquer gênero, quando vai fazer uma boquinha na lanchonete do outro lado da rua. E depois retornar ao ambiente asséptico do hospital, clínica ou posto de saúde.
 
5.   Consultoria não se confunde com assessoria nem com lobby. É instrumento ideal de remuneração para serviços inexplicáveis, por qualquer ângulo que se observe e analise. Basta copiar e colar, que uma grana alta e sonante cai na conta corrente. Principalmente se o consultor for da casa, do time, da turma, essas coisas...
 
6.    A obviedade número 3? Pessoal, esse é um óbvio que não se pode escrever. Ainda. Quem sabe ano que vem?  

terça-feira, 24 de novembro de 2015

TRÊS VEZES AO AMANHECER, de ALESSANDRO BARICCO



   Depois de passeios pela noite alta, fiz um retorno ao "Três vezes ao amanhecer", o livro de contos de Alessandro Baricco, publicado pela Objetiva, selo Alfaguara, este ano, em tradução de Joana Angélica D'Ávila Melo. O livro surgiu primeiro no romance "Mr. Gwyn", do próprio autor, como misteriosa publicação de um certo Akash Narayan. Em nota introdutória, Baricco diz que, enquanto escrevia o romance, "senti vontade de também escrever aquele livrinho, um pouco para dar uma leve e distante sequência a 'Mr. Gwyn'  e um pouco pelo simples prazer de perseguir uma certa ideia que eu tinha na cabeça." Uma maravilha de livro.
 
   Aqui estão alguns trechos de "Três vezes ao amanhecer":
 
   UM
   [...] Depois foi até a cama e enquanto atravessava o quarto percebeu a luz que se filtrava pelas cortinas. Voltou e com uma das mãos procurou os cordões para abri-las, recordando como era matemático, embora por razões incompreensíveis, puxar sempre o cordão errado, aquele que abre quando você quer fechar e vice-versa. [...] Estava amanhecendo. Olhou o céu longínquo, clareado por uma luz ambígua, e não teve mais certeza de nada. [...] Havia aquela luz. Achou que era um convite, mas agora lhe parecia complicado entender se era dirigido também a ele. Olhou o relógio como se houvesse alguma probabilidade de encontrar ali uma resposta qualquer e não deduziu nada de útil, exceto a vaga impressão de que era uma hora errada para um monte de coisas.
 
   DOIS
   E de fato, naquela manhã de verão, a alvorada se espalhava pelo céu límpido com tal segurança que até aqueles subúrbios sem ambições pareciam apanhados de surpresa, acabando por ceder a uma quase beleza para a qual não tinham sido construídos. Havia reflexos otimistas nas janelas, e a pouca grama brilhava, onde havia, com um verde inesperado. Passavam carros, raros, e até eles pareciam ter suspendido qualquer pressa especial, como se estivessem atravessando uma trégua.
 
   TRÊS  
   E, de fato, do horizonte havia subido uma luz cristalina para reacender as coisas e repor o tempo em movimento. Talvez fosse o reflexo sobre o mar, distante, mas havia algo de metálico no ar que nem todas as alvoradas têm, e a mulher pensou que isso a ajudaria a permanecer lúcida, e calma. [...] Aquela luz a ajudava. [...] Agora dirigir era mais fácil, e nem mesmo o fato de estar havia horas ao volante lhe pesava mais. [...]
   [...] Olhava aquela casa, diante de si, e pensava na misteriosa permanência das coisas na corrente sempre movediça da vida. Estava pensando que a cada vez, vivendo com elas, acaba-se por deixar-lhes em cima como que uma leve mão de tinta, a cor de certas emoções destinadas a desbotar, sob o sol, em lembranças.
 
 
 

domingo, 22 de novembro de 2015

NOITE ALTA, RUY ESPINHEIRA FILHO

  
   Passeio pela noite alta, aquela desvestida de qualquer vestígio diurno, de anoitecer e da noite inicial, sempre agitada por luzes e vozes.
   Passeio pela noite alta, aquela encorpada, silenciosa e densa: noite quase pura, que antecede um novo alvorecer. Aquela em que até os galos ainda dormem.
   Essa noite alta está posta em livro por Ruy Espinheira Filho. E é por ela que passeio.
   O poeta faz sua saudação agradecendo "Ainda poder / escutar a Musa, / embora já imerso / na sombra difusa." Acontece que a sombra do poeta é facho que ilumina a todos que alcança. Todos que estamos imersos na pior sombra, essa do cotidiano de sangue e de mentiras.
   O  poeta ilumina nossa noite a partir de um caminho de memórias de vida e morte, de outros tempos, outras ruas e noites em que moravam anjos. E em que a sombra de Orfeu descia docemente sobre aqueles que, "[...]encantados, / ainda iriam arder vidas inteiras".
  A noite alta não oferece mapas, nem o poeta a isso se dedica. Ao contrário, escancara portas e novas trilhas ao revelar trazer consigo "[...] de modo claro ou obscuro, / cada vez mais saudades do futuro".
   Nessa noite alta não se deve acompanhar o poeta, passo a passo, pois há golpes de ventos súbitos e retornos inesperados e leituras e releituras de livros e episódios, dilúvios e anjos da guarda, meninas mortas e cidades antigas; e porque é alta essa noite também nela se encontra muita teia de sonhos.
    Não se trata de um passeio no parque, esse que se faz pela noite alta. Há tumultos cordianos desde o antológico poema "Dias", nas páginas iniciais. Outros baticuns cardíacos afloram quando nos deparamos com as moças de antigamente, postas em soneto memorável, do qual se extraí a preciosa lição de "ser feliz por ter sofrido tanto".
   Passeio, não viagem. Por isso mesmo, retornamos ao conforto do nosso tempo para depois, descansada a alma, voltarmos a essa noite alta com que o poeta nos brinda. Noite para muitos passeios e contemplações. Nela, o tempo do poeta, dilatado em seus extremos, é próprio mas universal. E exige leveza do leitor na aproximação. O poeta pensa seus tempos para nos entregar beleza em versos, reconhecendo: "não sei como poderia transmitir a alguém a alma / daquele tempo".
   Noite alta, o tempo da alma.


Noite alta e outros poemas, de Ruy Espinheira Filho, publicado pela editora Patuá, SP, 2015.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

OBSCENAS - OBITUÁRIO

   OBITUÁRIO

   O leiteiro, o amolador de facas.
   O monóculo.
   O slide e seu projetor.
   O walkman, o toca-fita.
   O estêncil e o mimeógrafo.
   A conduta ilibada, o notório saber.
   A parte que nos devia caber.
   O valor literário.
   A arte.

domingo, 15 de novembro de 2015

ELES ATIRAM EM VOCÊ


eles atiram em você
quando matam franceses
espanhóis russos ingleses
norte-americanos
muçulmanos libaneses
eles atiram em você

brotam de antigas eras
hoje como ontem e amanhã
para matar em nome de deus
sua infidelidade cristã
seus valores ateus
em você eles atiram
quando matam judeus

em você atiram
a barbárie de séculos findos
eles matam você
naquele que cai degolado
queimado afogado esfaqueado

é em você que atiram 

e cada corpo tombado
seu nome ostenta
homem mulher criança
que a eles não se junta

eles atiram em você exatamente agora

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

MERIDIANO DE SANGUE, CORMAC McCARTHY


   Toadvine e o kid permaneciam em seus cavalos contemplando aquela desolação com os demais. Na extensão distante da playa um oceano frio rebentava e água desaparecida havia milhares de anos esparramava-se em marolas prateadas sob o vento matinal.
   Parece o barulho de uma matilha de cães, disse Toadvine.
   Pra mim parecem gansos.
   De repente Bathcat e um dos delawares viraram seus cavalos e os fustigaram e gritaram e a companhia fez meia-volta e se agrupou e começou a percorrer numa fila o leito do lago na direção da exígua linha de arbustos que delimitava a margem. Homens pulavam de seus cavalos e os manietavam instantaneamente com peias de corda arranjadas de improviso. No instante em que terminaram de prender seus animais e haviam se atirado ao solo sob a moita de creosoto com armas a postos os cavaleiros começaram a surgir distantes no leito do lago, um fino friso de arqueiros a cavalo que bruxuleavam e guinavam sob o calor crescente. Cruzaram a frente do sol e evaporavam um a um para então reaparecer e eram negros sob o sol e cavalgavam através daquele mar evaporado como fantasmas estorricados com as patas dos animais pisoteando e agitando a espuma que não era real e se perderam sob o sol e se perderam no lago e tremeluziram e se agruparam em um borrão para então dispersar novamente e cresceram plano a plano em lúridos avatares e começaram a se amalgamar e então começou a aparecer acima deles no céu puncionado pela aurora um símile infernal de suas hordas cavalgando em fileiras gigantescas e invertidas e as patas dos cavalos incrivelmente alongadas pisoteando os cirros finos e elevados e os ululantes antiguerreiros pendendo de suas montarias imensos e quiméricos e os gritos altos e selvagens repercutindo através daquela bacia achatada e estéril como os gritos de almas invadindo por algum rasgo no tecido das coisas o mundo inferior.
 
 
 
A isso chamo de momento grandioso da literatura, o narrador inteiramente dentro da cena, partícipe e menestrel, trazendo para o texto toda a potência e colorido da movimentação dos personagens, embriagando o leitor com sequências de imagens de esbugalhar olhos e reter respiração.
Cormac McCarthy, em "Meridiano de sangue" (tradução de Cássio de Arantes Leite, Alfaguara/Objetiva, 2009), alcançou o topo dos grandes romancistas universais em 1985. Leio mais uma vez o "Meridiano de sangue" pelo simples prazer da leitura de um belo texto. E sentindo suas semelhanças com o "Grande sertão: veredas", de Guimarães Rosa, os espaços imensos, a guerra fratricida, os limites extremos de generosidade e violência, o desamparo do homem diante da força da natureza, a base histórica. E até um Candelário já encontrei no "Meridiano"...rs. Fica a sugestão de leitura necessária.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

HUMANOS NO MEIO DA TARDE


   A carga era muito alta. A lenha se apinhava na carroceria de forma desigual. O caminhão balançava na pista. Seguia à nossa frente a uma velocidade que nos parecia inadequada para aquele estropício. A rodovia, no meio da tarde de um domingo, não apresentava o costumeiro e ensandecido movimento. A 101 tranquila.
   Entre nosso carro e o caminhão trotava um Fiat Uno do século passado. Então veio a curva, aberta e plana, sem maiores dificuldades. Mas foi ali que o poeirão subiu na lateral da pista. Ao meu lado, M gritou:
   - Meu Deus, Carlos, uma batida, o caminhão virou!
   O Uno sumiu na poeira, eu puxei meu carro para o meio da pista, tentando contornar o que não via bem, temendo bater em algo que tivesse se soltado do acidente, aproveitando a ausência de trânsito no sentido contrário, e assim venci aquele pequeno trecho em perturbação. Vi as rodas do caminhão para cima, girando velozmente, e a carroceria meio esmagada contra o capim do acostamento. Parei meu carro logo depois do Fiat Uno. Outros carros começaram a parar nos dois lados da rodovia.
   Não houve batida, o caminhão havia tombado, muito provavelmente por conta do empuxo da carga na curva. O motorista do Uno confirmava que o caminhão vinha dançando na pista. E assim nos aproximamos da cabine e das pessoas que estavam lá dentro.
   Com o celular na mão, não consegui me lembrar do número do Samu ou da Polícia. M ficara no carro. Uma ambulância de atendimento intensivo havia parado e o condutor já estava ao celular falando com os socorristas e passando a localização do acidente. Parecia saber bem o que fazer naquela situação. O homem contornou a cabine e abriu a outra porta.
   - Duas vítimas, desacordadas, é, duas vítimas.
   E balançou negativamente a cabeça. Eu guardei meu celular no bolso e não me aproximei mais. M me chamava; havia saído do carro e me chamava. Troquei duas palavras com o condutor do Fiat Uno e voltei pro meu carro. Nada mais a fazer ali. 
   Do outro lado da pista, motoristas desciam dos seus carros com celulares nas mãos. E fotografavam sem cessar, de vários ângulos, o caminhão tombado. Não quisemos mais ver aquilo.
   Fizemos orações, em silêncio, por todos eles.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

ELES SE ATIRAM AO MAR


eles se atiram ao mar
num reverso de parto

atravessam essas águas
afundam nessas ondas
morrem naquelas praias
somem noutras espumas

eles buscam novo porto
com mulheres e filhos
e a mão pesada de deus
a desapontar rumos

se atiram ao mar antigo
para viver antigas penas

carne entre espadas
grãos na moenda
números na tevê
irmãos retirantes

ao mar se atiram
porque atiram neles
- via cruciante

e do mar se retiram
errantes e estropiados
e do mar são retirados,
os que não mais respiram

e no já velho mundo
correntes se tornam
de um outro mar revolto:
sangue, suor e luto
que entornam certezas
e rasgam fronteiras