sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

AULAS DE LITERATURA, JULIO CORTÁZAR



   [...] Embora possa parecer paradoxal, devo dizer que tenho até vergonha de assinar meus contos, porque tenho a impressão de que me foram ditados por alguém, de que não sou o verdadeiro autor. Não quero vir com histórias mirabolantes, mas às vezes tenho a impressão de que sou um pouco um médium que transmite e recebe outra coisa.
 
   Sempre escrevi sem saber muito bem por que o faço, movido um pouco pelo acaso, por uma série de coincidências: as coisas me chegam como um pássaro que pode entrar pela janela.
 
   [...] se há uma coisa que defendo em mim, na literatura, em todos os escritores [...], é a soberana liberdade de um escritor de escrever o que sua consciência e sua dignidade pessoal o levem a escrever.
 
   [...] um escritor que se considere comprometido, no sentido de somente escrever sobre seu compromisso, ou é mau escritor ou é um bom escritor que vai deixar de sê-lo porque está se limitando, está fechando totalmente o campo da imensa realidade, que é o campo da escrita e da literatura e está se concentrando exclusivamente numa tarefa que provavelmente os ensaístas, os críticos e os jornalistas fariam melhor que ele.

   Os trechos acima foram extraídos do livro "Aulas de literatura, Berkeley, 1980", de Julio Cortázar, publicado em 2015 pela Civilização Brasileira, com tradução de Fabiana Camargo e organização de Carles Álvarez Carriga.

   O primeiro excerto me fez rir, pois me levou até a Flica 2011, quando disse algo semelhante durante o encontro com Mayrant Gallo e Jorge Araújo. Lembro-me dos risos, alguns de mofa e escárnio, tão logo soltei a afirmação de que me sentia, às vezes, um médium no processo de escrita ficcional. Agora rio eu, confortado, por ter em minha companhia nada menos que Cortázar. E, sim, também eu não sei muito bem por que escrevo o que escrevo. E, sim, não acredito em ficção comprometida previamente com o que quer que seja. E, sim, defendo igualmente a soberana liberdade de se escrever com total liberdade de expressão. E viva Cortázar!
 
   Claro que o livro tem muito mais que essas anotações que destaquei acima. Adiante, quem sabe, voltarei a destacar outros trechos.

sábado, 16 de janeiro de 2016

SOTEROPOLITANAS, OBSCENAS, CARLOS BARBOSA


SOTEROPOLITANAS

   Aqui o coração percute. Na marra.
   Sorria, mesmo que a fratura seja exposta.
   O coração pode ser a liberdade, mas não sai do peito.
   Tem um não sei quê de ontem um sabe-se lá o quê de amanhã.
   Ladeira dá preguiça, largo dá festa, praça dá camarote.
   E cordeiro é profissão.
   Fica terminantemente proibido o silêncio.



Mais um dos minicontos do livro Obscenas, lançado ano passado pela P55 Edições, bem a propósito do verão que torra dentro e fora qualquer bom senso.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

LADEIRAS, VIELAS & FARRAPOS, TOM CORREIA



   Ladeiras, vielas & farrapos, o novo livro de contos de Tom Correia, já estava anunciado em seu livro de estreia Memorial dos medíocres, vencedor do prêmio Braskem, em 2002. A ambiência soteropolitana, as referências à cultura pop, o ser baiano entre altos e baixos, mais para profundidades e sombras, agora constroem um panorama vívido da cidade do São Salvador e suas múltiplas facetas. A linguagem encontrou o equilíbrio preciso entre registro precioso, adequação e clareza, livrou-se de qualquer pretensão, fez-se planície para o galope da leitura. 
   O livro merece mais que prêmios e aplausos. Merece várias leituras por parte de todos que amam a literatura e a essa terrinha em que nos enterramos, acordados ou em sonhos. Merece ser adotado nas faculdades de letras e nos colégios. Merece traduções, versões, transposições, o que seja. Merece correr mundo, de boca em boca, de mão em mão. Merece alcançar a condição de clássico.
    Se mais disser, direi menos. Mesmo assim arrisco afirmar que a organicidade de Ladeiras... e seu tom de realismo fantástico ou de suprarrealismo, que permeia boa parte dos contos, conferem um sabor especial à leitura e encorpam o conjunto de contos de um valor, digamos, diamantífero. Tom Correia conhece profundamente sua cidade, sua gente, sua prosódia e, em especial, suas recentes trocas de pele, da Sloper à Zara, da av. Sete aos shoppings, do carnaval na praça aos camarotes do circuito Barra/Ondina.
    Com esse livro, Tom Correia entrega a Salvador um presente que talvez não tenha seu valor reconhecido - não será de espantar que isso aconteça. Mas daqui do meu cantinho insignificante adianto o meu voto de Livro do Ano para Ladeiras, vielas & farrapos. E minha recomendação para que o degustem de forma imoderada e repetida.