terça-feira, 25 de setembro de 2018

MEU IRMÃO



   Ontem, 24 de setembro, fez 49 anos que meu irmão Antonio Nelson morreu.
  Desde o domingo, 23, que tenho dele me lembrado. O acidente que o vitimou aconteceu na noite anterior à sua morte.
   Tudo na frase inicial me causa espanto: o tempo que passou, o irmão, o nome, a morte. 
    Quase cinco décadas... guardo uma lembrança de nós dois, juntos, no meio da noite "assistindo" pelas ondas do rádio ao milésimo gol de Pelé. Mas é falsa. Ele morreu dois meses antes daquele Vasco x Santos. Que partida terá sido a que assistimos, então? Talvez eu venha a me lembrar no "memento mori", ou dia desses, vendo uma foto de uma célula, lendo um artigo sobre o planeta Vulcano.
     O irmão que era meu ídolo e de quem só levei cascudo e taponas... Mas que fazia meu coração bater forte com cada estrepolia cometida, dentro e fora do campo de futebol. Um artista em estado bruto, a soltar chispas no deserto.
     O nome sobrevive na lápide e numa rua da cidade. Quase escrevi "cidade natal", mas meu irmão nasceu em São Paulo, no bairro da Lapa, acredito eu. O nome do pai e do avô materno. Um composto familiar que não resistiu a si mesmo.
     A morte, mais que inesperada, aos 15 anos incompletos, resultou sendo a partida que sempre desejou: "um dia vou-me embora daqui". Até hoje não foi, de verdade.


sábado, 15 de setembro de 2018

POESIA CHINESA, de ANDRÉ CARAMURU AUBERT




    O professor Teixeira se queixou de sua poesia não repercutir junto à crítica, que mal havia saído uma resenha em blogue, disse ele. Bem, não faço resenha, apenas comento os livros cuja leitura aprecio, não perco mais do meu tempo com os "outros". O professor Teixeira está bem ocupado, pelo que percebi, com sua nova amiga, a investigadora Carmen e com a antiga, ah, Simone, mas... ó ele aqui num blogue de novo! Grande Teixeira...!
      
     Bela ideia, essa, de trazer um curso sobre poesia chinesa como extrato vital de uma narrativa romanesca. Bela ideia, meu caro André Caramuru Aubert. A gente se senta e participa do curso com certo entusiasmo. EAD apimentada. A gente pensa que conhece poesia chinesa. Até tenho aqui uma coletânea e tal e coisa. Mas, ora, o Teixeira revira as dinastias, revela particularidades daquelas épocas em que poetar era fundamental para a carreira do servidor público. Pensem um pouco nisso. 

    E nos faz lembrar de Paterson, o filme, e de William Carlos Williams, por conseguinte. Vou assisti-lo hoje mais uma vez, só por causa do "Poesia Chinesa", vejam vocês. Sim, não uma poesia que cante o amor e a guerra, mas o vento, as curvas das montanhas, o sentido da ausência, do caminho, da chuva que cai, essas coisinhas de que a poesia verdadeiramente é feita. Sim, um versejar que viaja mundos, modifica-os e retorna para influenciar sua própria origem. Ou não, sabe-se lá. Mas que é bonito, é. E  muito.

    Claro que revelar esses meandros líricos para alunos e alunas da pós pode propiciar a um professor momentos de realização profissional e uma ou outra encrenca no território íntimo. Nosso grande Teixeira passa por isso, essas realizações, essas encrencas. E a crônica das intrigas acadêmicas, que o Autor oportunamente traz para o texto, confere ainda ao romance tensão e graça pelos episódios kafkianos, dantescos, temerários, e certo desgosto pelo alto grau de veracidade que concretiza. No que vai muito bem, diga-se sem receios com o policiamento do politicamente correto. 

     Perdi a conta das garrafas de vinho abertas e enxugadas nesse romance do Aubert, por isso abri uma para meu bom prazer, de um honesto chileno tinto Reserva do Loncomilla Valley, e para escrever estas linhas. Trair e ser traído, pelo quique da bola ou pelo silêncio de quem se ama. Ser um poema chinês, açoitado pelos cheiros marinhos ou das ruínas silvestres. Seguir a sombra, repetir os erros, como quem bate ponto no portão da fábrica toda madrugada, sei lá, permitir à vida que aconteça em plenitude nas entrelinhas. Pois nas linhas, ora, nas linhas correm os trens. 

Poesia chinesa, de André Caramuru Aubert, SESI-SP Editora, 2018.

      

sábado, 1 de setembro de 2018

O PAI DA MENINA MORTA, de TIAGO FERRO



    
   "Sobrou um fio de cabelo na fronha? Um pedaço de unha atrás da privada no chão gelado do banheiro? O hálito forte da manhã entre o teto do quarto e a cama de cima do beliche? Não há nada a fazer com os seis dentes de leite guardados na caixinha laranja que faz um barulho triste de chocalho órfão quando balançada."

   Não sei que perguntas faria, muito menos se escreveria um livro ou apenas um bilhete. Ser o pai de uma menina morta deve revirar, mesmo, uma pessoa pelo avesso; prosseguir, assim, vísceras expostas, a se despedaçar aos poucos, a se dessangrar tempo adentro pode resultar em desvarios e perdas irrecuperáveis. Tudo o mais torna-se crueldade pura a chicotear o lombo desse pai, da buzina dos carros na rua ao riso do casal na lanchonete. E, no entanto, o coração não para, a mente insiste em registrar com maior intensidade o que antes mal se vislumbrava.

   E como é preciso gritar, as mãos escrevem. E o leitor desse "O pai da menina morta", de Tiago Ferro, sente-se também açoitado pelo desvario da narrativa fractal, se posso assim dizer, revolvida por uma inescapável dor, dor que jamais encontra lenitivo, pois os golpes se sucedem impiedosos. Se nem mesmo os especialistas conseguem firmar a tempo um diagnóstico que permita a um coração seguir batendo, curvar-se não pode ser opção a um pai que perde sua filha.

   A morte de uma criança cancela uma sequência inteira de futuro, abre um vazio na história familiar, se a família resistir a essa perda. Ferro viveu sua tragédia pessoal, somos informados disso; talvez brote daí a amplitude e a profundidade que imprime a história que nos desvela, ou nos enovela feito um Pollock apunhalado. Confesso que não consegui me abrir às pinceladas de humor e a presença de Maradona e da Copa de 86 do/no texto. Sou pai de uma menina grande, estive preso ao  núcleo do romance, muito ocupado em manter regulares a TA e os batimentos cardíacos. Pancadão.

O pai da menina morta, Tiago Ferro, editora Todavia, SP, 2018