"Sobrou um fio de cabelo na fronha? Um pedaço de unha atrás da privada no chão gelado do banheiro? O hálito forte da manhã entre o teto do quarto e a cama de cima do beliche? Não há nada a fazer com os seis dentes de leite guardados na caixinha laranja que faz um barulho triste de chocalho órfão quando balançada."
Não sei que perguntas faria, muito menos se escreveria um livro ou apenas um bilhete. Ser o pai de uma menina morta deve revirar, mesmo, uma pessoa pelo avesso; prosseguir, assim, vísceras expostas, a se despedaçar aos poucos, a se dessangrar tempo adentro pode resultar em desvarios e perdas irrecuperáveis. Tudo o mais torna-se crueldade pura a chicotear o lombo desse pai, da buzina dos carros na rua ao riso do casal na lanchonete. E, no entanto, o coração não para, a mente insiste em registrar com maior intensidade o que antes mal se vislumbrava.
E como é preciso gritar, as mãos escrevem. E o leitor desse "O pai da menina morta", de Tiago Ferro, sente-se também açoitado pelo desvario da narrativa fractal, se posso assim dizer, revolvida por uma inescapável dor, dor que jamais encontra lenitivo, pois os golpes se sucedem impiedosos. Se nem mesmo os especialistas conseguem firmar a tempo um diagnóstico que permita a um coração seguir batendo, curvar-se não pode ser opção a um pai que perde sua filha.
A morte de uma criança cancela uma sequência inteira de futuro, abre um vazio na história familiar, se a família resistir a essa perda. Ferro viveu sua tragédia pessoal, somos informados disso; talvez brote daí a amplitude e a profundidade que imprime a história que nos desvela, ou nos enovela feito um Pollock apunhalado. Confesso que não consegui me abrir às pinceladas de humor e a presença de Maradona e da Copa de 86 do/no texto. Sou pai de uma menina grande, estive preso ao núcleo do romance, muito ocupado em manter regulares a TA e os batimentos cardíacos. Pancadão.
O pai da menina morta, Tiago Ferro, editora Todavia, SP, 2018
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