sexta-feira, 30 de agosto de 2013

A CIVILIZAÇÃO DO ESPETÁCULO, MARIO VARGAS LLOSA



As ilusões plasmadas com a palavra exigem ativa participação do leitor, esforço de imaginação e, às vezes, em se tratando de literatura moderna, complicadas operações de memória, associação e criação, algo de que as imagens de cinema e da televisão dispensam os espectadores. E estes, em parte por esse motivo, tornam-se cada dia mais preguiçosos, mais alérgicos a um entretenimento que exija deles esforço intelectual. Digo isto sem a menor intenção beligerante contra os meios audiovisuais e a partir da confessa posição de viciado em cinema - vejo dois ou três filmes por semana -, que também tem prazer com um bom programa de televisão (essa raridade). Mas, por isso mesmo, posso afirmar com conhecimento de causa que todos os bons filmes que vi na vida e que tanto me divertiram não me ajudaram nem remotamente a entender o labirinto da psicologia humana tanto quanto os romances de Dostoiévski, ou os mecanismos da vida social tanto quanto Guerra e Paz de Tolstoi, ou os abismos de miséria e os ápices de grandeza que podem coexistir no ser humano tanto quanto aprendi com as sagas literárias de Thomas Mann, Faulkner, Kafka, Joyce ou Proust. As ficções das telas são intensas por causa da imediatez e efêmeras nos resultados: aprisionam e libertam quase de imediato; das literárias somos prisioneiros para toda a vida. Dizer que os livros daqueles autores entretêm seria ofendê-los, porque, embora seja impossível não os ler em estado de transe, o importante das boas leituras é sempre posterior à leitura, efeito que deflagra na memória e no tempo. Está ocorrendo ainda em mim, porque, sem elas, para o bem ou para o mal, eu não seria como sou, nem acreditaria no que acredito, nem teria as dúvidas e as certezas que me fazem viver. Esses livros me modificaram, modelaram, fizeram. E ainda continuam me modificando e fazendo, incessantemente, no ritmo de uma vida com a qual os vou cotejando. Neles aprendi que o mundo está malfeito e sempre será malfeito - o que não significa que não devamos fazer o possível para que não seja ainda pior do que é -, que somos inferiores ao que sonhamos e vivemos na ficção, e que, na comédia humana de que somos atores, há uma condição que compartilhamos, em nossa diversidade de culturas, raças e crenças, que nos torna iguais e deveria tornar, também, solidários e fraternos. O fato de não ser assim, de, apesar de termos tantas coisas em comum com nossos semelhantes, ainda proliferarem preconceitos raciais e religiosos, a aberração dos nacionalismos, a intolerância e o terrorismo, é algo que posso entender muito melhor graças àqueles livros que me mantiveram alerta e em brasas enquanto os lia, porque nada melhor do que a boa literatura para aguçar nosso olfato e nos tornar sensíveis para detectar as raízes da crueldade, da maldade e da violência que o ser humano pode desencadear.


 Trecho do pronunciamento de Llosa ao receber o Prêmio da Paz dos Editores e Livreiros alemães, em 1996, que fecha o livro de ensaios "A civilização do espetáculo", Objetiva, 2013, tradução de Ivone Benedetti. Esse pronunciamento recebe no livro o sugestivo título de "Dinossauros em tempos difíceis". Leitura necessária.

domingo, 18 de agosto de 2013

INVASÃO NO BLOG


Aos meus poucos leitores: este blog está praticamente inoperável por conta de uma invasão de horrendas peças publicitárias a toda vez que acesso para postagem. A partir do meu notebook, claro. As tais peças abjetas impedem a utilização adequada do espaço para novas postagens.

Atrevi-me a baixar um programa para downloads de filmes e séries e deu nisso: três ou quatro outros programas acoplaram-se no processo e agora gasto preciosos minutos a fechar insistentes telas, que mais parecem chatos de galocha em reunião de trabalho. E não consigo postar textos no meu blog, usando meu notebook.

Aliás, isso deveria ser considerado na elaboração das novas leis para internet. Punição severa para os proprietários desses programas invasores, chatotórixes, cerceadores de direitos alheios, da mesma forma que certos bancos quando encaminham cartões sem serem pedidos.

Como sou apenas um usuário, busco agora um técnico para limpar meu notebook dessa praga de invasores pentelhos. Até lá verei o que posso fazer a partir de outros computadores. Minhas desculpas.

sábado, 10 de agosto de 2013

O PAÍS DAS NEVES, YASUNARI KAWABATA






Guardar num dedo a memória de uma mulher. Voltar a essa mulher, aprendiz de gueixa em uma estância termal no País das Neves, noutro inverno, como se construísse a cada passo um poema amoroso. Kawabata conheceu certa gueixa chamada Komako e a fez borboleta nesse intenso romance de neve e fogo. Komako flutua em volta de Shimamura, e de outros clientes, envolta em quimonos alados; o pano de baixo é vermelho, por inevitável. Komako vai quando quer ficar; fica, quando quer partir; canta, quando doi; silencia, quando feliz. Nada se realiza por completo na narrativa. O desejo move essas personagens, mas escapa como floco de neve numa poça d’água. A solução, partir; mas retornar à hospedaria faz mais sentido para Shimamura, que em sua cidade deixou mulher e filhos. A neve a se acumular nos beirais como improváveis peônias brancas. 
O texto de Kawabata explora o cenário de forma apaixonada, faz o mesmo com o cortejar mútuo entre Komako e Shimamura, até revelar a tragédia que pontuou desde o início esse idílio. A tecnologia macula o cenário com fogo e a Via-Láctea invade o coração de Shimamura para dizer-lhe que a loucura talvez seja o que verdadeiramente dá sentido à vida. 

O país das neves, Yasunari Kawabata, tradução de Neide Hissae Nagae, Estação Liberdade, 2004. Publicado originalmente na revista eletrônica Verbo21.


quinta-feira, 8 de agosto de 2013

SALVADOR, ZONA AZUL (VI)


Um homem aproximou-se de nossa mesa na praça de alimentação do Aeroporto.
Falou em inglês e estendeu a mão. 
Retribuí o aperto de mão emendando um "I don't speak english".
O homem disse, em português, que isso não era problema, pois falava também francês etc.
Matraqueou sua condição de professor numa petrolífera, que tinha 2.500 reais pra receber e que estava sem comer desde ontem.
Espantado, meti a mão no bolso e lhe estendi dois reais.
- Dois reais! Pra eu almoçar! Não quero dois reais, não! - bradou o tal sujeito.
E arrancou pelo saguão enfurecido.
Conheci hoje no Aeroporto de Salvador, agora identificado como ALEM, o "pedinte padrão Fifa". 
Na saída, depois de uma hora e cinquenta minutos, paguei 11 reais de estacionamento.
Quero minha aposentadoria no padrão Fifa, seu moço!

terça-feira, 6 de agosto de 2013

SALVADOR, ZONA AZUL (V)


Durante anos, almoçamos no Ceasinha do Rio Vermelho toda quinta-feira. 
Restaurante do Edinho.
O Governo, por assim dizer, resolveu derrubar o Ceasinha e construir um novo no mesmo local. 
Imprensaram o pessoal num prédio dos fundos, a comer poeira e a ficar surdo com as obras em andamento. Ainda em andamento.
Fui lá comprar extrato de pimenta de Barra do Choça pra mandar pra Sumpaulo.
Conversei com a turma de antes, agora abatida e encapsulada em 2 x 2.
Dizem: o Novo Ceasinha, terceirizado, cobrará de 1.200 a 1.500 reais o futuro metro quadrado a título de instalação para lojas e restaurantes. Ou seja, um boxe 4 x 4, p.e., sairá por uns 25 mil reais só para se instalar. Fora o condomínio mensal.
Dizem: os espaços maiores sairão por até 150 mil reais a ocupação.
Well, well, well, o Novo Ceasinha terá padrão Shopping, ou padrão Fifa, pelo que lá ouvi.
Dizem: o tal partido não receberá mais nenhum voto dos trabalhadores do Ceasinha.
E nós, ao que tudo indica, não reuniremos condições bancárias para voltar a almoçar naquele pedaço de terra que um dia ocupamos.
Salvador, Bahia.

domingo, 4 de agosto de 2013

CENA DE RUA, OUTRA


Noite.
Uma adolescente miúda corre pela calçada até um automóvel estacionado.
Entra no carro pela porta traseira.
Surge uma mulher que a perseguía pela calçada.
Essa mulher posta-se em frente ao Fiesta branco de vidros escuros.
A pessoa ao volante tenta arrancar.
A mulher firma as duas mãos no capô do Fiesta.
A pessoa ao volante acelera e freia em seguida, o carro parece um touro a preparar o ataque na arena.
A mulher é empurrada de costas pelos arrancos do Fiesta mas mantém-se firme.
Grita: - Você não vai! - Você não vai!
Escora o carro com as mãos, em desespero, enquanto grita.
A adolescente está no banco de trás, não se ouve a voz dela; a pessoa ao volante segue a acelerar e freiar; a mulher repete sua frase essencial enquanto é empurrada de costas pela rua.
O motor do carro fala pelas pessoas dentro dele.
Ouve-se então outro grito de mulher, vindo de uma janela do edifício em frente:
- Deixa ela ir! - Deixa ela ir!
A mulher então desiste, sai de lado e o Fiesta parte à toda rua abaixo.
Entramos, enfim, em casa, o ruído do carro a se perder distante.
Nossos corações batendo alto.
Noite de sábado em Salvador, numa rua da Pituba.