segunda-feira, 25 de abril de 2011

BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS

Um dia, muito de repente, abri o embrulho. Olhei e li, lentamente, morfina. Um pavor frio tomou conta da minha barriga inteira. Uma vontade de correr, sumir no mundo, de me confessar com o Padre Viegas, me agarrou. Pedir uma penitência de três terços por ter ido longe demais, ter invadido o mundo, sem a professora. A palavra morfina me levou a muitos lugares e a outros exílios.
Morfina me trouxe o altar-mor, com o Cristo crucificado e deitado, morto de dor e chagas, coberto com um cetim roxo e triste, até a cintura. Mas entre mor e morte faltava um pedacinho que estava escrito na noite. Noite que me engolia para o nada.
[...]
O senhor Morais, com presteza, fervia a seringa na lata, armada como um navio incendiado no fundo do prato de louça. O álcool cheirava a meu pai quando voltava do trabalho. Ele parava no bar da esquina, com os amigos, como se numa estação da via-sacra.
Eu espiava, com dor, a agulha furar a carne pouca de minha mãe. Ela então não mais cantava ou gemia. Silenciava. A morfina apagava o altar-mor, a Josefina, o Mistura Fina, o José, e os ais do senhor Morais. Ela dormia a noite toda, um sono pesado, mas temporário, eu sabia, como tudo mais, naquela casa da rua Alferes Esteves.


Esta é uma amostra da literatura infantojuvenil praticada por Bartolomeu Campos de Queirós, em "Ler, escrever e fazer conta de cabeça", editado pela Global Editora, em 2004. Uma prosa rica em poesia que me foi apresentada por M. como exemplo de literatura infantojuvenil contemporânea. Narrativa sem diminutivos, que respeita o leitor de todas as idades, em especial, o público a que se destina.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

POESIA REUNIDA, FLORISVALDO MATTOS


Este é um grande momento da literatura brasileira: o lançamento da Poesia Reunida e Inéditos, de Florisvaldo Mattos. Aposentado das lides jornalísiticas, o poeta lapida sua obra para nosso deleite. Dia 14, próxima quinta-feira, temos um encontro marcado com o melhor da poesia e da amizade. Na livraria Cultura do shopping Salvador. Regado a bom vinho, com certeza.

"O vasto conjunto lírico que encontramos nesta Poesia reunida e inéditos representa, portanto, um monumento da poesia brasileira de entre a segunda metade do século passado e a primeira década do presente, erguido por um espírito agudamente atento ao tempo e dele liberto, como sempre é, paradoxalmente, o dos grandes poetas." (Alexei Bueno).

Aí vai um aperitivo, que um dia o poeta me enviou por e-mail (que não consegui publicar aqui em sua forma correta, em quartetos, pelo que me desculpo):

DUAS ALMAS

Quando Auden nasceu, já Kaváfis ia

Por botequins à caça de mancebos.

Na gelada York, o sol fulgia lépido,

Tanto quanto o farol de Alexandria.

Quando morreu Kaváfis, Auden já

Deixara o áspero barro de Inglaterra,

Por desgosto, por dor, talvez vergonha

De insano amor sujeito a controvérsia.

História e erotismo a ambos deram chão

De sentir e veraz profundidade.

Nada lhes obsta o ardor de transgredir,

De afrontar maldições, hipocrisias.

Irmãos de alma e desejo interditado,

A sombra de ambos pelos portos vaga,

Adentra alcovas cujos balcões se abrem

Para oásis de prazeres e jardins.

Espelho de iguais em duas idades,

Se neste um se mira, logo o outro põe

No lume de cristal que reverbera

Douto narciso de modernidades.

É límpido o que a face do cristal

Reflete, igual à líquida de um rio:

Um – rei do Egito, o cinto de ametista;

O outro, a túnica sépia de milícia.

Dupla tenaz que para o mundo ostenta

A aura sábia de seres desertados.

Kaváfis, Auden: um, dois séculos viu;

O outro, só um – de horror, tormento e guerra.

Ambos hoje nos parques de jacintos

Unidos vão, espíritos de mãos

Dadas, que ao chão da vida mais importam

Sonho e amor nas pegadas da beleza.






domingo, 3 de abril de 2011

GUERREIRA

Delicada guerreira. Seus grandes olhos chovidos. Miúda guerreira. Seus pezinhos vesgos. As horas todas de luta. Todo um exército. Um hospital de campanha também. Cuidadosa guerreira. Recebe os ataques pacientemente. Tampona feridas. Recupera terrenos. Ergue seu mundo. Guerreira frágil. Dona de toda fortaleza do mundo. Avança por entre colunas de fogo e pontas de lança. Não ataca, avança. Guerreira pacífica. Acalanta seus agressores. Ajuda-os a se levantarem, e são muitos. Guerreira honrada. Solitária em sua marcha. Entre montanhas de livros. Torta de dor, insone. Arrasta a sina dos pobres. Lírica guerreira. Sua arma, dignidade. Seu escudo, inteligência. Seu canto de guerra, o mais belo poema. Amada guerreira.