domingo, 24 de agosto de 2014

A PIADA INFINITA, DAVID FOSTER WALLACE


Um romance de 1.198 páginas, sendo 96 delas de notas. Notas que ampliam, aprofundam, iluminam, desdobram e brincam com passagens do romance. Um romance considerado por críticos como inclassificável. Um romance de vanguarda, futurista, pós-scifi, que importa... 

A família Incandenza movimenta o enredo: o pai, cientista e cineasta; a mãe, linguista e reitora de uma complexa escola de formação de tenistas; Orin, filho mais velho, ex-tenista de futuro, atual chutador numa equipe de futebol americano; Mário, o do meio, deficiente muito especial, cinegrafista em tempo integral; e o mais novo, Hal, gênio drogadito, aluno da escola de tênis, em estado depressivo aos 17 anos. Junte a eles uma garota inefável, de beleza suprema coberta por um véu, que estrela filmes do pai e namora um dos filhos. Um desses filmes torna-se objeto de terrorismo por hipnotizar quem o assiste, a um ponto de provocar letargia mortal. Um filme assassino, que leva serviços secretos e, em especial, uma falange canadense de matadores em cadeiras de rodas a um jogo de dissimulações, propaganda e muito sangue derramado. Ouve-se o rangido das rodinhas...

E há uma nova América do Norte, composta por USA, Canadá e México, sob o comando do primeiro, claro, presidida por um ex-crooner de banda de cassino. Ventiladores sopram poeira tóxica para a Grande Concavidade, onde antes fora um dos estados sulistas. “E tudo parece áspero, espinhoso e aborrecido, como se cada som ouvido ganhasse subitamente dentes.” E mais: há um novo tempo, que serve para capitular o romance, agora patrocinado anualmente por uma grande empresa, que impõe seu nome a cada virada de calendário. Colado à escola de tênis, há um centro de recuperação de drogados, e isso não é gratuito.

A imaginação de DFWallace parece infindável neste romance. Seu conhecimento científico, espantoso. Impressionante a descrição minuciosa de tudo, ou praticamente tudo, que encorpa o cotidiano de seus personagens (tipos de drogas, medicamentos e tratamentos, variações de uma partida de tênis, uma filmografia completa e fichada, um complexo, e bote complexo nisso, war game desenvolvido e praticado pelos alunos da escola de tênis, o Eschaton, que pode durar horas, e... basta).

Dá certo desespero ler A piada infinita, não por sua extensão, que chega a ser prazerosa, mas pela crueza da realidade que o jorro de talento criativo do Autor engendra. Lembra a “inviabilidade da raça humana” martelada pelo protagonista de “A queda”, de Michel Laub, comentado aqui na edição passada. Chega-se a desejar que o Entretenimento encontre sua solução final no tal filme mortífero..

A tradução portuguesa perturba um pouco a leitura. Topar com adolescentes norte-americanos a dizer: “Estás a ver?” “Sou um inepto do caraças.” “Vós pareceis querer que nós morramos.”, leva um leitor brasileiro, no caso eu, a desentendimentos momentâneos e a distrações com o texto e com sua verossimilhança. No entanto, aquele que ama literatura e o romance, em especial, deve ter A piada infinita como leitura necessária e, para alguns, obrigatória.

DFWallace suicidou-se em 2008, aos 46 anos de idade.


A PIADA INFINITA, David Foster Wallace, trad. de Salvato Telles de Menezes e Vasco Teles de Menezes, Quetzal Editores, Lisboa, Portugal, 2012.
O comentário acima foi escrito para ser publicado na coluna "Crítica Rasteira", da revista eletrônica Verbo21 que, infelizmente, não está mais sendo atualizada. Uma pena, uma perda significativa para a literatura baiana e brasileira. Desta forma, publico-o aqui, meses depois de lido o livro e mal escrito essas linhas.
Andei lendo por aí que uma tradução brasileira está sendo preparada por Caetano Galindo e deverá ser publicada em breve. Ou seja, terei que ir às compras.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

A VERDADE SOBRE O CASO HARRY QUEBERT, JOËL DICKER


Um livro impressionante, impossível negar.
Romance policial, livro de suspense, história de amor, relato de uma grande amizade.
Diário de uma investigação criminal.
Uma história de escritores, lições de labor literário, metaliteratura.
Romance de romances vividos e escritos.
Narrativa fragmentada, epistolar, não linear, por vários autores.
Uma demonstração de como a literatura pode ser perigosa. Para quem escreve, para quem convive com quem escreve, para quem lê.
O mundo pérfido do business livresco: convivência e retroalimentação de paixão, ódio e cinismo, arte e money.
Reviravoltas na trama, surpresas constantes, um show de imaginação.
Um autor de 29 anos.
Um quadro de Hopper na capa.
A sangue frio, O corcunda de Notre Dame, Twin Peaks, Atos de amor.
Dizem que depois desse livro a literatura contemporânea não será mais a mesma. Não é pra tanto. Mas fiquei dois dias grudado na leitura. 
O Corriere della Sera concedeu-lhe "summa cum laudem"; o Le Matin disse ser "magistralmente construído"; o El País taxou: "melhor livro do ano"; e o The Guardian, "um hino para a imaginação ilimitada". 
Um livro admirável, não há como negar.


A verdade sobre o caso Harry Quebert, Joël Dicker, tradução de André Teles, Intrínseca, 2014, 576 páginas.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

O PROFESSOR, CRISTOVÃO TEZZA


O sentido da vida merece descoberta? A que vida, das muitas que impulsionamos, atribuir sentido? Uma família e suas múltiplas máscaras rendem boas histórias, se conduzidas por quem conhece o riscado. Não precisa ser uma grande família, à moda dos Buendía, pai, mãe e filho já formam um triângulo mais que intenso e agudo. As pessoas que tangenciam o triângulo, ou a ele se acoplam temporariamente, acabam por experimentar dessa intensidade e de suas arestas. 

Cristovão Tezza demonstra, em seu mais recente romance, possuir a habilidade dos grandes prosadores na moldagem de personagens interessantes e de narrativas que exploram as profundezas d'alma e as possibilidades do desejo e da inação. O ser humano a se ver e a se interrogar face ao que fez e ao que lhe fizeram, em preparo de angústias e de gestos extremos.

A ação de "O professor" transcorre de forma concentrada: do momento em que o protagonista acorda até o instante em que conclui sua arrumação para receber justa homenagem na universidade onde era catedrático. Algumas poucas horas de arrumação. Ocupa espaço limitado ao quarto, banheiro e sala de refeições.

Ocorre que a tal arrumação dá-se para além das abluções matinais, café da manhã e nó de gravata, trivialidades cotidianas, coisas de superfícies, mas na mais sombria profundidade da existência do professor Heliseu, linguista de cepa. É um chacoalhar de vidas.

Um mergulho na memória, o repassar de atos cruciais que o arrastaram até aquele precioso e temido momento. Um caminho marcado, também, pela investigação da linguagem. Tropeços, indecisões, incompreensões, desvios, surpresas diversas, perturbações de espírito, o sexo como fio condutor. O sexo tardio, mas provedor de delícias e confusões. A mulher o trai e o abandona, depois de também ser traída, o filho se rebela e escapa para outra vida, o trabalho finda com a aposentadoria.

O professor está só. Há uma morte antiga que o habita; outra morte mais recente o espicaça. O filho distante encarna o inimigo em seus piores pesadelos. E é esse o homem que se arruma para ser homenageado pelos colegas.  

Eheh, não só as consoantes intervocálicas foram elididas para tudo dar no que deu, eheh.


O professor, de Cristovão Tezza, Record, 2014