domingo, 26 de agosto de 2018

O PESO DO PÁSSARO MORTO, de ALINE BEI



    Aqui está um romance que inova na forma e preserva o que a literatura tem de mais poderoso: emoção e lirismo. Sua verdade conquista o leitor sem lançar mão de artifícios, discursos da moda. É pura literatura, sem concessões. Aline Bei sabe que "a cura não existe" e que a humanidade parece se especializar em produzir doenças. E tudo isso pesa demais, precisa ser sacudido, carece de benzeduras.
   
   Da infância à idade madura, tudo pode se tornar um rosário de perdas. Muda-se de escola, de bairro, de trabalho, de amor e a caixinha de guardados acumula apenas ausência e dor, "eu/ quase nunca usava plural fora de casa", diz a protagonista, e qualquer de nós também pode dizer. E dizer em parágrafos escorreitos ou em versos de métrica perfeita ou em versos livres, tanto faz, creio eu, face a "o peso do pássaro morto". O "fraseado" solto e leve, escolhido por Bei, confere ao texto a elasticidade própria do viver, esse golpear constante de atos inesperados e incompreendidos. 
   
   Viver é ser alvo permanente. Violência na escola, violência contra a mulher, distanciamento entre pais e filhos, solidão na velhice, temas da contemporaneidade compõem a trama do romance sem, em momento algum, assumir tom de libelo, acontecem pois foi assim que se deu a história da amiga de Carla, da mãe de Lucas, da mulher apaixonada por Vento, essa história com a qual Aline Bei inicia sua carreira de escritora. Uma carta atirada por baixo de nossa porta, posto que jardim não mais temos.
  
   Fechei o livro com aquela sensação maravilhosa de ter participado de uma experiência singular e emocionante. Não de querer mais, não, não. Pois lá estava tudo que a Autora teve a oferecer ali, principalmente as turvações. Um filho pode se tornar um completo estranho, sim. Um cão, animal estigmatizado por causar a perda e a dor mais profunda à protagonista, pode vir a ser, sim, um companheiro mais que amado. E o que é o amor, se não o combustível que permite viajar ao encontro do desconhecido?


O peso do pássaro morto, de Aline Bei, Editora Nós/SP, 2017

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

FLORISVALDO MATTOS LANÇA LIVRO NO IGHBa



   Nesta sexta-feira, dia 24 de agosto, a partir das 18 horas, no IGHBa (Praça da Piedade), o poeta e jornalista Florisvaldo Mattos promove o lançamento de nova edição de seu livro "A Comunicação Social na Revolução dos Alfaiates", em edição da Assembleia Legislativa do Estado da Bahia-ALBA. Feito o convite, lá estaremos.

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

O QUE ACONTECE NA VARANDA




   Algo me impede de olhar a varanda.
   Lá, tudo acontece o tempo todo.
   Movimentação contínua, barulho permanente.
   Agora nenhum ruído chega de lá. 
   O sol se recusa, o vento varre.
   A chuva se esbate na vidraçaria.
   E uma penumbra teimosa reina na varanda.
   Temo demais romper essa sombra.
   É que tudo acontece com mais intensidade, sinto.
   O silêncio instalado procria.
   Procria.
   O que não percebo, mas está.

sábado, 18 de agosto de 2018

REMORSOS PARA UM CORDEIRO BRANCO, REINA MARIA RODRIGUEZ




        Também fui menino 
             e fui menina

eu também fui menino e fui menina
e tive corpo e tive vida
andei dispersando-me entre outros corpos.
só cheguei a ser quem sou
quando soube que algo morria por dentro
onde morava em pequeno espaço do peito
um cordeirinho branco
que me lambia
aos gritos.


Remorsos para um cordeiro branco, de Reina Maria Rodriguez, em tradução de José Eduardo Degrazia, publicado pela Editora Penalux, 2018. Reina nasceu em 1952 em Cuba, onde vive "com seus gatos, seu piano, seus amigos e sua poesia", no dizer do tradutor e apresentador dessa antologia da poeta. Não li o livro, li alguns poemas que me foram passados por Mônica Menezes, por deles muito gostar. Aí está o primeiro que li. Vamos ao livro agora, todos os que lerem isto aqui.


domingo, 12 de agosto de 2018

MINOTAURO, BENJAMIN THAMMUZ





   Li em duas sentadas esse romance do Tammuz. Desses que a gente lamenta chegar ao fim. Mas dá um prazer que se alonga por muito tempo após o livro fechado. E que permanece em nós maturando reflexões sobre a capacidade humana de amar, de se enganar, de urdir armadilhas inescapáveis para si mesmo. Lembrei-me de "Museu da inocência", do Pamuk, narrativas que se aproximam pelo vetor obsessão amorosa. Ah, mas tão díspares...
   
   Um homem maduro julga ter encontrado a mulher por quem sempre sonhou encarnada numa adolescente de 17 anos. Está a trabalho num país estrangeiro. Por conta de sua profissão, logo se informa sobre a moça e passa a lhe enviar cartas. Sedutoras, amorosas, misteriosas. A moça cede ao jogo, propõe aproximações, sempre evitadas pelo homem, que ora some, ora ressurge em novas cartas. Daí, com o tempero do tempo, as situações dramáticas se sucedem.
   
   O homem é agente secreto israelense. Tammuz traz para o romance um resumo do que foram os embates entre árabes e judeus no território da Palestina e suas colônias por boa parte do século passado. Nada simplificado. Mais para caleidoscópio. Dois dos homens que a desejada moça, não por acaso chamada Téa, são produtos de somas genéticas e culturais do Oriente com o Ocidente, modelos de homens planetários, embora comprometidos com propósitos nacionais. Um possui vários passaportes diferentes, outro defende uma civilização mediterrânea, ambos falam várias línguas - seres ampliados em sua condição natural. 
   
  Agradou-me especialmente o destemor de Tammuz com a repetição, não só de informações mas de trechos integrais da narrativa. Um recurso da poesia utilizado na prosa, sem economias, que funciona com um peso dramático surpreendente. Talvez eu o leia novamente, antes de devolver o exemplar ao mestre Ruy Espinheira Filho, que mo emprestou.

   Trechos: "Então, ele aguardou o momento em que ela voltasse o perfil para a amiga e, quando isso aconteceu e ele viu os traços do rosto da garota, sua boca se abriu como se ele estivesse prestes a soltar um grito, que, contudo, ficou reprimido. Ou será que o grito escapou de sua boca? De qualquer forma, os passageiros não reagiram." [...] 
   "Não sei por que eu achava que, antes de encontrá-la, receberia algum aviso prévio. De todo modo, nunca imaginei que seria pego de surpresa. Mas fui. Eu a vi de repente, sentando-se na minha frente no ônibus. Não tive dificuldade nenhuma em reconhecê-la. Quando ela desceu, eu a segui.[...] A pele e a tez do seu rosto eram como eu os recordava: muito claros, como os de minha mãe, com um rosado que ficava mais profundo, sem qualquer marca e sem pressa, na direção das maçãs do rosto, tão gradualmente a ponto de não ser possível dizer onde a brancura acabava e onde começava o rosado. Mas sua boca era de um repentino rubro brilhante. E aqueles dentes. Meu Deus! Não é possível que tivessem sido criados apenas para mastigar comida. Se assim fosse, eu diria que não era necessário um esforço tão grande."

Minotauro, Benjamin Tammuz, tradução de Nancy Rozenchan, editora Rádio Londres, 2016, 2a. edição.

sábado, 4 de agosto de 2018

A PROMESSA, FRIEDRICH DÜRRENMATT




   [...] para ser sincero, nunca tive os romances policiais em tão alta conta e sinto muito que o senhor também os escreva. Perda de tempo. No entanto, o que o senhor disse em sua palestra de ontem valeu a pena; como os políticos fracassam de forma tão criminosa... [...] as pessoas esperam que ao menos a polícia saiba botar ordem no mundo, mesmo que eu não consiga imaginar esperança pior que essa. Infelizmente, em todas essas histórias policiais se perpetra ainda um engodo bem diferente, e não falo do fato de que seus criminosos sempre encontram a justiça, pois essas belas histórias são moralmente necessárias. Trata-se das mentiras que preservam o Estado, como o piedoso ditado de que o crime não compensa, ainda que seja preciso apenas dar uma olhada na sociedade para saber a verdade sobre esse dito popular, tudo isso eu deixo passar, mesmo que apenas por princípio profissional, pois cada público e cada contribuinte têm o direito a seus heróis e a seu final feliz, e nós, da polícia, somos obrigados a oferecer esse direito, como vocês, os escritores, também o são. Não, eu me irrito muito mais com a ação em seus romances. Aqui o engodo é tremendo demais, desavergonhado demais. Vocês constroem ações de um jeito lógico, e ele segue como um jogo de xadrez, aqui o criminoso, aqui a vítima, aqui o cúmplice, aqui o beneficiário; basta que o detetive conheça as regras e refaça os movimentos, logo ele terá posto o criminoso em xeque, ajudado a justiça a triunfar. Essa ficção me deixa furioso. Apenas em partes se lida com a realidade através da lógica.

   [...] Por sua vez, em seus romances o acaso não tem vez, e, se algo parece acaso, é ao mesmo tempo destino e coincidência; desde sempre, a verdade é jogada aos lobos por vocês, escritores, em detrimento de regras dramatúrgicas. Mandem essas regras para o inferno de uma vez. Um acontecimento não pode se desenvolver como um cálculo matemático pelo simples fato de de nós nunca conhecermos todos os fatores necessários, mas apenas alguns poucos, a maioria deles bem secundários. Também o acaso, o incalculável, o incomensurável tem um grande papel aí. Nossas leis baseiam-se apenas na probabilidade, na estatística, não na casualidade; aplicam-se apenas no geral, não no específico. O individual fica fora do cálculo. Nossos meios criminalísticos são insuficientes, e quanto mais nós os desenvolvemos, em princípio mais insuficientes serão. Vocês, da escrita, não se preocupam com isso. Não tentam lidar com uma realidade que vive escapando entre os dedos, mas montam um mundo que é administrável. Esse mundo talvez seja perfeito, possível, mas é uma mentira. É preciso deixar a perfeição para lá se quiserem continuar com as coisas, com a realidade, como é adequado para os homens, ou vão ficar aí sentados, ocupados com seus exercícios inúteis de estilo. 



   Aí está um trecho de "A Promessa", de Friedrich Dürrenmatt, escritor suiço, em edição da TAG Estação Liberdade, 2018. Infelizmente, não consegui capturar a imagem da capa do livro na internet, e não achei justo apresentar outra capa que não a dessa edição especial da TAG, entregue aos assinantes neste mês de agosto, fruto da curadoria do escritor Cristovão Tezza. Junto com "A Promessa" vem a novela "A Pane", que ainda não li.
   Aqui, o narrador, um comandante de polícia conta a um escritor uma investigação muito especial. A narrativa pode ser rotulada, para quem gosta disso, de antirromance policial. Para mim, foi uma deliciosa surpresa. Leitura altamente recomendável.

Imagem: FDürrenmatt, askART, capturado em Bol Fotos