quinta-feira, 15 de junho de 2017

ROMANCISTA COMO VOCAÇÃO, de HARUKI MURAKAMI



    É apenas uma opinião pessoal, mas acho que, basicamente, escrever romances é algo bem maçante. Nesse ato não existe quase nenhum elemento de inteligência. O escritor se tranca sozinho no quarto e, compenetrado, modifica o texto, dizendo: "Não é bem assim, nem assim". Mesmo que ele consiga melhorar um pouco a precisão de uma linha depois de quebrar a cabeça o dia inteiro sentado à mesa, não receberá nenhum aplauso por isso. Não receberá tapinhas nas costas nem um "Parabéns". Somente ele balançará a cabeça satisfeito: "É isso aí". Quando o livro for lançado, talvez ninguém no mundo perceba a precisão daquela linha. Escrever romances é isso. Dá muito trabalho e é bastante tedioso.
     
    No mundo existem pessoas que montam a maquete de um navio dentro de uma garrafa usando uma longa pinça, e demoram quase um ano nessa tarefa. Escrever romances talvez seja parecido. Não sou muito habilidoso com trabalhos manuais nem sou capaz de fazer algo tão complicado quanto uma maquete, mas acho que, essencialmente, as duas atividades têm pontos em comum. No caso de romances longos, o trabalho minucioso vai durar dias e dias e dias, dias e dias. Quase uma eternidade. Somente as pessoas com vocação para isso ou que não sentem sofrimento nessa atividade conseguem continuar por muito tempo nela.


     Sigo aqui balançando a cabeça também e soltando boas risadas com o texto de Murakami. Misto de biografia e ensaio, esse "Romancista como vocação" é leitura das mais prazerosas e elucidativas. As questões comuns à escrita literária e ao mundo literário, com suas particularidades inevitáveis, são exploradas com honestidade, franqueza e bom humor, no mais das vezes. Não chega a ser um manual, é Murakami contando como viveu seus primeiros dias como romancista, como tem enfrentado as críticas, a pressão dos prêmios, o tempo, o tempo, e muito mais. "Romancista como vocação", de Haruki Murakami, com tradução do japonês de Eunice Suenada, saiu pela Alfaguara, 2017.

domingo, 11 de junho de 2017

LEITURA E VIDA

     Tenho lido muito. Nem sempre o que gostaria de ler. Mas nada de diferente de como sempre li, algo entre oportunidade e impulso. Detesto método, planejamento, essas tecnalidades, quando se trata de leitura. Típico de quem cresceu lendo o que encontrava pela frente, sem biblioteca ou orientação professoral. Aprendi assim, sigo assim, assim está muito bom. A vida escorre.

    Leio no rompante um livro como esse do Klíma, que postei abaixo. Narrado em primeira pessoa por algumas vozes, conhecemos a vida de uma dentista em Praga, divorciada de um marido que não esquece, com uma filha adolescente envolvida com drogas, um pai ligado ao terror comunista recém-falecido, uma irmã distante e uma mãe de repente solitária. E a vida hoje na República Tcheca, pós-imperialismo soviético. Claro que o mundo da dentista, já abalado por uma indisposição à vida, sofre uma mexida com a presença de um jovem ex-aluno do ex-marido, com que passa a se relacionar amorosamente. Bem, o resto é o prazer de acompanhar as diferentes vozes narrando seus encontros e desencontros. E com o brilhantismo de um romancista completo, essas vozes seduzem por suas marcações próprias, seus olhares e interpretações exclusivas, num trabalho de linguagem que reputo como impecável, no que estou a elogiar a tradução.

     Tenho mais uns livros com marcadores ao meio: "Árvore de fumaça", de Denis Johnson, "Diego e Frida", do Le Clézio, que não consegui concluir por mero desencontro físico, "Babilônia", de Ruy Espinheira Filho, que exige sempre leituras muitas, a antologia de Sosígenes Costa, e duas preciosidades que ainda não abri: o último volume da tetralogia napolitana de Elena Ferrante e "Romancista como vocação", do Murakami. Tudo isso por aqui, em algum lugar. Ou no banco de trás do carro.

      E a vida? Ah, esta escorre às vezes para o bueiro, outras para um lago tépido ou mar revolto. Deixei de cuidar do rumo, mas ainda lembro que para esquecer que ela se parece mais com enxurrada, leio sempre, em qualquer lugar, os mais diversos livros que consigo alcançar.

     Claro que descanso de minhas leituras lendo a Bíblia para minha filha. Isso, até o novo livro da Larissa Manoela... bem, melhor não adiantar o cortejo.

sexta-feira, 9 de junho de 2017

NEM SANTOS NEM ANJOS, de IVAN KLÍMA



   Esta noite matei meu marido. Abri-lhe um furo mortal no crânio com uma broca de dentista. Esperei para ver se uma pomba saía voando dali, mas foi um grande corvo negro que surgiu. 
   Acordei cansada e sem gosto pela vida. À medida que envelheço, meu prazer de viver vai diminuindo. Será que algum dia senti um gosto intenso pela vida? Não estou certa, mas decididamente já tive mais energia. Expectativas também. Vivemos enquanto esperamos por alguma coisa.
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     Quando saio do chuveiro, estremeço toda, mas não é de frio. Embora estejamos em abril, ainda uso a calefação. Tremo de solidão, sacode-me o pranto que escondo, o pranto por mais um dia que escorre, rio sem águas, leito ressequido repleto de seixos agudos. Estou descalça, nua, o penhoar jogado no chão e ninguém contempla meus seios. Eles também choram, abandonados, sem carícias, e nunca mais jorrará leite deles.
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     Precisei sair para ver papai, fazer aquelas panquecas para ele e ficar tagarelando sobre mamãe. Foi um desempenho fantástico. Realmente consegui tocar-lhe as cordas do coração. Fui tomar conta de meu pobre pai doente, que nos deixou na miséria. Não o via há um mês, no mínimo. Da última vez, estive no hospital com mamãe.
     [...]
     Papai era a última pessoa que eu queria ver. 
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     Qual será o meu legado? Seguramente pontes para dentaduras, material para obturações, próteses e, nos meus anos finais, se conseguir arrumar tudo, excelentes pontes para dentaduras, obturações e próteses. Também uma filha que não estou conseguindo criar de modo adequado. Mas o que restará após o décimo ou centésimo piscar de olhos de Deus, quando todas as palavras tiverem sido esquecidas e, entre os vivos, não houver ninguém para lembrar-se de minha aparência? Quem examinará fotografias em decomposição, se restarem algumas?
     Talvez os rastros de atos de amor remanesçam, ou, ao menos, as suas repercussões. Talvez alguém, alguma espécie superior de justiça, contabilize em quantas gotas alguém conseguiu diminuir a dor no mundo. Foi o que eu fiz também, pelo menos na boca das pessoas; as doenças do espírito não consigo derrotar, nem mesmo as minhas próprias.

   Destaco esses trechos do romance "Nem santos nem anjos", do escritor tcheco Ivan Klíma, publicado aqui pela editora Record, em 2006, com tradução de Alexandre Jovanovic. 










sexta-feira, 2 de junho de 2017

1939, CONTAGEM REGRESSIVA PARA A GUERRA



    Durante o dia, uma série de decretos e ordens para o esforço de guerra entraram em vigor. A medida mais significativa foi a aprovação de Hitler à morte por "eutanásia" dos deficientes físicos e mentais, a qual, encontrada depois da guerra nos arquivos alemães, apresentava data de 1º de setembro. A ordem havia sido mantida em suspenso durante o verão e, na realidade, só foi autorizada em outubro. Foi planejada para liberar instalações e recursos médicos para o esforço de guerra e para livrar a nação daquilo definido como fardo genético. Como resultado das instruções, mais de 70 mil alemães deficientes ou cronicamente doentes foram assassinados. (88/9)

     A instrução a Neville Anderson para entregar pessoalmente o ultimato no Ministério  do Exterior alemão chegou às 5h, apesar de Hitler já ter sido alertado para esperar um ultimato por um telegrama secreto da embaixada alemã em Londres, despachado tarde da noite anterior. Um pouco antes das 9h, Henderson entrou no edifício e encontrou apenas o intérprete-chefe de Hitler, Paul Schmidt. Ficaram constrangidamente frente a frente enquanto Henderson leu o curto ultimato. Schimidt então correu para o prédio da Chancelaria do Reich, onde encontrou um ansioso grupo de funcionários e soldados à espera. Levado à presença de Hitler e Ribbentrop, Schimidt leu lentamente o ultimato. "Quando acabei", escreveu em suas memórias, "houve um silêncio total. Hitler estava sentado imóvel, olhando fixamente para a frente." Após alguns momentos, Hitler virou-se para Ribbentrop com um olhar selvagem e perguntou: "E agora?" (117/8)


Trechos de "1939, contagem regressiva para a guerra", de Richard Overy, com tradução de Vitor Paolozzi, publicado pela Record, SP, em 2009.