Esta noite matei meu marido. Abri-lhe um furo mortal no crânio com uma broca de dentista. Esperei para ver se uma pomba saía voando dali, mas foi um grande corvo negro que surgiu.
Acordei cansada e sem gosto pela vida. À medida que envelheço, meu prazer de viver vai diminuindo. Será que algum dia senti um gosto intenso pela vida? Não estou certa, mas decididamente já tive mais energia. Expectativas também. Vivemos enquanto esperamos por alguma coisa.
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Quando saio do chuveiro, estremeço toda, mas não é de frio. Embora estejamos em abril, ainda uso a calefação. Tremo de solidão, sacode-me o pranto que escondo, o pranto por mais um dia que escorre, rio sem águas, leito ressequido repleto de seixos agudos. Estou descalça, nua, o penhoar jogado no chão e ninguém contempla meus seios. Eles também choram, abandonados, sem carícias, e nunca mais jorrará leite deles.
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Precisei sair para ver papai, fazer aquelas panquecas para ele e ficar tagarelando sobre mamãe. Foi um desempenho fantástico. Realmente consegui tocar-lhe as cordas do coração. Fui tomar conta de meu pobre pai doente, que nos deixou na miséria. Não o via há um mês, no mínimo. Da última vez, estive no hospital com mamãe.
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Papai era a última pessoa que eu queria ver.
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Qual será o meu legado? Seguramente pontes para dentaduras, material para obturações, próteses e, nos meus anos finais, se conseguir arrumar tudo, excelentes pontes para dentaduras, obturações e próteses. Também uma filha que não estou conseguindo criar de modo adequado. Mas o que restará após o décimo ou centésimo piscar de olhos de Deus, quando todas as palavras tiverem sido esquecidas e, entre os vivos, não houver ninguém para lembrar-se de minha aparência? Quem examinará fotografias em decomposição, se restarem algumas?
Talvez os rastros de atos de amor remanesçam, ou, ao menos, as suas repercussões. Talvez alguém, alguma espécie superior de justiça, contabilize em quantas gotas alguém conseguiu diminuir a dor no mundo. Foi o que eu fiz também, pelo menos na boca das pessoas; as doenças do espírito não consigo derrotar, nem mesmo as minhas próprias.
Destaco esses trechos do romance "Nem santos nem anjos", do escritor tcheco Ivan Klíma, publicado aqui pela editora Record, em 2006, com tradução de Alexandre Jovanovic.
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