sábado, 7 de março de 2015

O IRMÃO ALEMÃO, CHICO BUARQUE



     O texto da orelha diz que Chico Buarque escreveu "o romance de sua vida". A afirmação permite, claro, dupla leitura: uma autobiografia e o melhor livro escrito por ele. É autobiográfico, sim, mas não chega a ser uma autobiografia, pois centrado em um episódio familiar e seus desdobramentos. Mas é, no meu entender, o romance de maior valor artístico escrito pelo autor multimídia. E, por isso mesmo, candidato natural a vencer todos os prêmios literários do ano. 
    Obra de ficção a partir de fato real, "O irmão alemão" tem tutano. Distante de ser um mero exercício intelectual, uma demonstração da genialidade de Chico Buarque, como foram tratados livros anteriores do autor, esse romance é uma narrativa com as marcas inconfundíveis da boa literatura. Os delírios do protagonista, na busca de um até então desconhecido irmão germânico, resulta em páginas de leitura deliciosa e que configuram com competência o perfil psicológico do personagem e o momento sócio-político em que vivia. Enquanto avança em sua investigação, o mundo dos livros, materializado pela estupenda biblioteca do pai, adquire papel fundamental na história que é contada. Dentro dos livros estão as pistas do mistério familiar. Vivo ou morto, em que país ou cidade, em que profissão, qual sua aparência, suas preferências, seu tom de voz, tudo isso motiva a escrita fantasiosa e rica do autor/protagonista.
     Sim, Sérgio Buarque de Hollanda, pai do autor, morou em Berlim entre 1929/30, teve um caso amoroso com uma alemã, que lá deixou grávida. Sim, houve uma carta da jovem alemã, Anne, falando do filho, do mesmo nome do pai. Sim, houve correspondências trocadas entre o governo alemão e o intelectual brasileiro para tratar do destino da criança.  Tudo isso é fato e reproduções desses documentos são expostas no livro. Chico Buarque foi até a Alemanha procurar o irmão, sim. Mas "O irmão alemão" é obra de ficção acabada e das melhores que li ultimamente.
    Os Hollander do livro são quatro: pai (Sérgio) e mãe (Assunta), dois filhos (Domingos, o Mimmo, e Francisco, o Ciccio). A ação transcorre dos anos 1960 ao período pós-queda do muro de Berlim, quando Ciccio, agora o professor Hollander, administrador de um blogue que trata de questões da língua portuguesa, vai até a Alemanha procurar o irmão. Mas até alcançar esse ponto, a narrativa expõe a vida estudantil nos duríssimos anos 1960, com os embates de rua e subterrâneos com a polícia da ditadura militar, as diferenças entre os irmãos Hollander, o desaparecimento de Mimmo e, principalmente, as investigações feitas por Ciccio em solo paulista até localizar o pianista pretendente citado por Anne em sua carta.
       Chico Buarque introduz, ainda, em "O irmão alemão", seu famoso senso de humor. Por tudo isso, e muito mais que deixei de fora deste comentário, o romance da vida de Chico oferece leitura prazerosa e enriquecedora. O compositor inigualável da MPB dá um passo enorme para se firmar, de forma inquestionável, como romancista dos mais expressivos na contemporaneidade. Acusado de ser um autor "frio", daqueles que não têm a espada fincada na nuca, Chico Buarque mergulha em sua história e na história da família e extrai uma narrativa prenhe de substância vital, um romance de leitura altamente recomendável.


O irmão alemão, de Chico Buarque, Companhia das Letras, 2014.

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