Dores esporádicas todos têm.
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Dores psicológicas todos têm.
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Mas há um tipo de dor que nem todos têm, felizmente. Alguns, premiados pela Moira, por Deus, pelo Acaso, a conhecem profundamente, com ela convivem todos os dias, sem domingos nem feriados. São as dores crônicas. Não são poucas as doenças a produzi-las. O reumatismo, por exemplo, é capaz de gerar mais de 300 quadros diferentes. O que se sabe é que é uma doença autoimune, gerada pelo próprio sistema imunológico. O organismo se defende tanto, produz tantos anticorpos que acaba por produzir dores terríveis, deformações internas e externas e sintomas desesperadores.
Meu avô Bernardo, para aliviar-se das dores reumáticas, em pleno inverno, mergulhava num rio gelado. Às vezes, sentado à margem do Marangueira, vendo-o banhar-se naquelas águas enregelantes, eu o imaginava louco. Noutros momentos, no meio de uma partida de canastra, eu via o seu rosto contrair-se. Então, por alguns minutos, seu olhar se perdia, vagava pela superfície das coisas. Eu não compreendia, mas percebia em seu olhar uma dor gigantesca e uma tristeza arrasadora. Muitos anos depois de sua morte, Regina, minha avó, contou-me que à noite, na cama, ele chorava baixinho.
A imagem daquele homem de quase dois metros de altura, capaz de carregar impressionantes partidas de tijolos (era oleiro), enrodilhado em si mesmo sob as cobertas e a chorar não saiu jamais da minha cabeça.
Levei 39 anos para entendê-lo. Um dia, uma dor insuportável atingiu meu pé esquerdo. Em poucas semanas, espalhou-se pelo corpo todo. Ao acordar, sentia-me congelado. O mínimo movimento produzia rajadas coloridas e multifacetadas da mais pura e concentrada dor. Uma radiografia de corpo inteiro revelou inúmeros pontos de inflamações nas juntas e nas articulações. Há 13 anos, arrasto-me pelos dias e pelas noites auxiliado por medicações, fisioterapia e massagens. Já tentei o espiritismo, a Virgem de Guadalupe, os chás e as simpatias. As dores crônicas são como as marés, batem com violência nas praias do corpo e depois se afastam por alguns segundos, para voltar outra vez. Sei que não terão fim. Tenho encontrado certo alívio no budismo, que afirma que tudo é ilusão, inclusive a realidade. Digo a mim mesmo que não existo, que sou hipocondríaco, que sou vil, desprezível, que devia suportar tudo com estoicismo, sem reclamar.
A dor maior talvez seja outra: a de compreender que somos mônadas, como disse Leibniz, e que estamos todos absolutamente fechados em nossas próprias prisões, à espera do dia em que a Morte venha nos libertar.
Charles Kiefer, em seu recente livro, "Para ser escritor", publicado pela Leya. Mas poderia ser um inédito de Carlos Barbosa. À exceção do budismo, que não adoto, e do avô Bernardo que não tive, eu poderia muito bem ter escrito (tirante o mérito do estilo, atendo-me apenas à verdade ali contida) o capítulo "As dores, a dor", de onde extraí o texto acima.
Imagem: Bol imagens.
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Dores psicológicas todos têm.
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Mas há um tipo de dor que nem todos têm, felizmente. Alguns, premiados pela Moira, por Deus, pelo Acaso, a conhecem profundamente, com ela convivem todos os dias, sem domingos nem feriados. São as dores crônicas. Não são poucas as doenças a produzi-las. O reumatismo, por exemplo, é capaz de gerar mais de 300 quadros diferentes. O que se sabe é que é uma doença autoimune, gerada pelo próprio sistema imunológico. O organismo se defende tanto, produz tantos anticorpos que acaba por produzir dores terríveis, deformações internas e externas e sintomas desesperadores.
Meu avô Bernardo, para aliviar-se das dores reumáticas, em pleno inverno, mergulhava num rio gelado. Às vezes, sentado à margem do Marangueira, vendo-o banhar-se naquelas águas enregelantes, eu o imaginava louco. Noutros momentos, no meio de uma partida de canastra, eu via o seu rosto contrair-se. Então, por alguns minutos, seu olhar se perdia, vagava pela superfície das coisas. Eu não compreendia, mas percebia em seu olhar uma dor gigantesca e uma tristeza arrasadora. Muitos anos depois de sua morte, Regina, minha avó, contou-me que à noite, na cama, ele chorava baixinho.
A imagem daquele homem de quase dois metros de altura, capaz de carregar impressionantes partidas de tijolos (era oleiro), enrodilhado em si mesmo sob as cobertas e a chorar não saiu jamais da minha cabeça.
Levei 39 anos para entendê-lo. Um dia, uma dor insuportável atingiu meu pé esquerdo. Em poucas semanas, espalhou-se pelo corpo todo. Ao acordar, sentia-me congelado. O mínimo movimento produzia rajadas coloridas e multifacetadas da mais pura e concentrada dor. Uma radiografia de corpo inteiro revelou inúmeros pontos de inflamações nas juntas e nas articulações. Há 13 anos, arrasto-me pelos dias e pelas noites auxiliado por medicações, fisioterapia e massagens. Já tentei o espiritismo, a Virgem de Guadalupe, os chás e as simpatias. As dores crônicas são como as marés, batem com violência nas praias do corpo e depois se afastam por alguns segundos, para voltar outra vez. Sei que não terão fim. Tenho encontrado certo alívio no budismo, que afirma que tudo é ilusão, inclusive a realidade. Digo a mim mesmo que não existo, que sou hipocondríaco, que sou vil, desprezível, que devia suportar tudo com estoicismo, sem reclamar.
A dor maior talvez seja outra: a de compreender que somos mônadas, como disse Leibniz, e que estamos todos absolutamente fechados em nossas próprias prisões, à espera do dia em que a Morte venha nos libertar.
Charles Kiefer, em seu recente livro, "Para ser escritor", publicado pela Leya. Mas poderia ser um inédito de Carlos Barbosa. À exceção do budismo, que não adoto, e do avô Bernardo que não tive, eu poderia muito bem ter escrito (tirante o mérito do estilo, atendo-me apenas à verdade ali contida) o capítulo "As dores, a dor", de onde extraí o texto acima.
Imagem: Bol imagens.
Sei das tuas dores. E que texto lindo. Bjsamovc
ResponderExcluirTexto lindo, fiquei muito tocada. Não há nada mais emocionante que a vida em si. Vou procurar esse livro.
ResponderExcluirUm abraço