segunda-feira, 21 de novembro de 2011

DA ORFANDANDE

Quem estava na plateia no dia em que participei do Café Literário, na Bienal 2011, reparou que eu me emocionei quando falei de um episódio de minha infância que inspirou o capítulo da bicicleta no romance "Beira de rio, correnteza". O assunto por si só me é doloroso. Mas dias depois caiu-me a ficha: aquele dia era 29 de outubro, umas 19 horas no horário de verão, umas 18 horas no horário normal - exatos 10 anos antes, ao anoitecer, morria minha mãe.

Demorei alguns anos para escrever sobre minha mãe. Provável que ainda não tenha conseguido. Mas em meu livro de contos, ainda inédito, está posto "Corpo de mãe", do qual extraí o pequeno trecho que destaco abaixo.

As visitas entupiam corredor e quarto. Era como se estivéssemos no Bendiá, na casa do meu avô, faltante apenas o café adoçado com rapadura e o farfalhar das saias rodadas das sete irmãs a receberem pretendentes. Ela era modista, fina. Era, primeiro de tudo, linda. E as conversas evoluíam de um ponto a outro, como se o velório estivesse instalado. E se falava do calor, da chuva que não se mostrava no céu, em compra de gado, em conserto de carro, em conta bancária arruinada, em viagem para São Paulo, em parentes distantes, na carestia, da corrupção de certas autoridades, de gangues juvenis que a cidade passava a conhecer, de dores nas juntas, das estradas esburacadas, e meu peito travava gritos: calem-se! Saiam daqui! Sumam, todos! É minha mãe quem está a morrer! Morro também eu-menino; tudo que representei para ela com ela se vai... silêncio! Toda expectativa e desconforto da gestação, toda alegria e dor do parto, todo cuidado ao me limpar e banhar e alimentar por todos os anos da minha infância, todo remédio ministrado, a lista de minhas doenças, as datas de meus machucados, de minhas travessuras, todo curativo aplicado, minhas roupas costuradas e remendadas e lavadas e passadas, toda palavra dura de repreensão e castigo, minhas más-criações, toda palmada e todo beijo, principalmente todo beijo, todo meu preparo de gente, tudo em mim que reconheço bom e generoso, tudo de mim que não habita minha memória vai-se embora com ela, se perderá... calem-se!

Assim eu presto uma pequena homenagem à maternura de D. Zezé, mãe de Mayrant, que partiu tão cedo. Não há idade para a orfandade, amigo.

4 comentários:

  1. Belíssima homenagem, Carlos.
    Abraço.

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  2. Não mesmo, Carlos. Atravesso, desde sexta-feira passada, o pior momento de minha vida. Obrigado pela homenagem. Onde quer que esteja, minha mãe está feliz com ela.

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  3. Conheço seu conto, Carlos, e chorei quando o li pela primeira vez. Como não chorar com tamanha orfandade, essa que nos visita todos os dias em forma de sombra?

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  4. Naquele dia, na mesa, com Marcos, Amélia e Thiago, comentara minutos antes sobre a importância daquela data pra nós. Uma mistura de saudade e orgulho tomou conta de mim nos seus segundos de silêncio. A lágrima que sempre se faz parceira não se fez de rogada... Nossa mãe estava feliz ouvindo você com a admiração que sempre demonstrou escancaradamente.
    Mayrant, receba o meu abraço amigo.

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