CHÃO
DE AREIA MOVEDIÇA
Por Krishnamurti Góes dos Anjos(*)
Após
chegarmos a última página do livro de contos “O chão que em mim se move” do
escritor Carlos Barbosa (Editora Penalux, Guaratinguetá – SP, 2016, 128p.)
surge-nos à mente a imagem de areias movediças, aquele fenômeno natural no qual
a areia, por estar embebida em água, não oferece resistência a animais, pessoas
ou objetos e traga-os para a morte. Antes de uma explicação do porque dessa
metáfora de areia movediça, cumpre situar a literatura do autor.
Fiel
à ambiência que o modelou, Carlos Barbosa (que também é romancista), não sonega
suas raízes nordestinas, apesar do pendor para a análise psicossocial. Tem em
relação a sua região (centro-oeste) da Bahia um repertório de lembranças,
vivências e imagens de infância, que aparecem nos contos e revelam um prosador
de temperamento e origens regionais. Como regional, se entenda também, uma
literatura que, por suas amplas inquirições existenciais, transborda do espaço
ficcional sugerido pela geografia em que se localiza. Parte do localismo para o
universal, empreende a sondagem da alma humana através da auscultação de uma
determinada zona geográfica.
Suas
narrativas são estruturadas com extrema simplicidade, numa prosa que tem o
colorido brasileiro, e recorre à oralidade, seja captando falares, seja
reproduzindo ditos e máximas populares que traduzem a sabedoria dos humildes.
Da fusão das personagens com a terra, dos homens com o cenário, sai o drama que
espelha a condição humana e, em assim sendo, legitima-se como literatura da
mais alta qualidade. As histórias curtas admitem, mais de um ponto de vista,
mais de um ângulo de enfoque. E o ângulo que cumpre analisar, e que nos remete
à metáfora da areia movediça, é aquele que fecha um círculo onde a realidade se
apoia na História, passa pelo contemporâneo dos sertões esquecidos desse imenso
Brasil, e projeta-se em perspectiva de futuro nefasto em um entrelaçamento de
causa e efeito. Três contos ajudam-nos a explicar:
Em
“O interrogatório”, o velho sertanejo Silvino, homem rude mas trabalhador e
honesto, que dedicou toda sua vida a cuidar da família e que aprendera com o
pai “tudo que é trabalho de homem do campo”, enquanto espera o delegado que o
interrogará, preocupa-se com a sorte de seus filhos também detidos. Vejamos o
registro narrativo: “No tempo de Horácio de Matos coisa assim não sucederia.
Ele, Silvino, iria ter com Horácio em Brotas, ou na trincheira que estivesse, e
diria, meus filhos sumiram faz três dias e não sei do destino deles, pois na
roça ocupado estava. Horácio lhe diria para ficar despreocupado, que tomaria as
providências, que gente dele não passava aperto, e chamaria um de seus homens e
determinaria investigações”. Mais adiante ficamos sabendo que o coronel Horácio
de Matos (personagem que realmente existiu), em verdade não pertenceu a sua
geração, mas a de seu pai – vejam a força do mito a atravessar gerações.
Horácio de Matos (1882-1931) foi um poderoso político e coronel do sertão
baiano (o uso de forças particulares nos sertões se explica pela falta do
Estado, onde, especialmente pelas grandes distâncias, não alcançavam as forças
regulares e estruturas estatais. O jagunço e o número dele à disposição dos
chefes políticos era símbolo de status quo). O mando deste coronel chegou a
constituir governo paralelo ao da capital. Pois bem; mais adiante ficamos
estarrecidos ao nos deparamos com o pensamento de Silvino: “pelo menos um bom
advogado vamos ter, eu e os meninos. A plantação perdida, as encomendas
desatendidas. Será que já queimaram tudo ou vão fazer como da outra feita:
encher caminhão com os pés de maconha, botar a gente em cima, algemados, cano
de escopeta no cangote, e desfilar pelas ruas pra exemplar?!”
O
conto “Queimada”, inicia com: “A suspeita era a de que havia armas escondidas
na serra da Cristalina. Armas que os subversivos cuidaram de trazer e guardar
para os inevitáveis enfrentamentos com os milicos da ditadura, mas que na
precisa hora, ficaram para trás, na fuga que encetaram no ano de 1971” Esta
introdução acaba por nos apresentar a outro homem velho, alquebrado, que
caminha na serra da Cristalina a procura de algo. A narrativa nos induz a
pensar que se trata de alguém que, de alguma forma, participou das guerrilhas
contra a ditadura militar, pensamento que o trecho “veio-lhe à mente a sucessão
de torturas sofridas, o pau-de-arara, o corpo esfolado, as unhas...”,
confirmam. O homem não procura armas, mas encontra uma arca onde estão
guardadas lembranças daquele tempo de resistência. Em dado momento, pensa: “… é
melhor caminhar por essas picadas até cansar o juízo, até não lembrar mais que
em outros tempos meus filhos por ela cruzaram, alegres e esperançosos, até não
me lembrar mais o motivo de assim proceder, até que restem entregues ao mato
que as cobrirá por falta de pés e patas que as definam e as mantenham
desimpedidas. E tudo se acabará porque nada pôde ser modificado quando foi
tempo de fazê-lo”.
E
finalmente, o conto “Corpo de pai”, onde transparece o lirismo de uma ficção
“fantástica”. Ali as consequências ficcionais são múltiplas, há como que um
redimensionamento do tema (o homem sertanejo explorado), surge uma alegoria que
não fica explicada. Somente o absurdo posto. Não fica explicada, vale dizer,
porque não se explica a inércia do não querer/poder mudar o próprio destino. O
personagem Lívio volta seu pensamento para o corpo do pai morto. “O corpo do
pai no caixão de papelão grosso, à sua frente, era mais que uma imagem
dolorosa. O governo corporativo havia autorizado a cerimônia pública na antiga
catedral, pois o pai de Lívio era um dos 'remanescentes', como eram chamados os
que não deviam obrigações a waterCo, companhia japonesa concessionária do
trecho do rio em Bom Jardim IV”. Aí temos o círculo fechado de que falamos mais
acima!
Dessa
forma, seja desnudando o fragor de conflitos íntimos quanto à solidariedade que
negamos ao próximo como acontece no excepcional “O encontro”, ou nos desajustes
da personalidade acuada ante as impossibilidades e desilusões do meio, de que é
exemplo pujante o conto “Vertigem”, ou ainda a exposição de uma consciência que
dá seu testemunho de uma dor que é coletiva (tenha-se ou não consciência
disto), como ocorre no já citado “Queimada”, a preocupação básica de Carlos
Barbosa com a criatura é permanente. A base humana é seu lastro. Não importa
precisamente o meio rude do sertão em suas possibilidades descritivas, mas sim,
as consequências que a completa falta de perspectivas de mudança acarreta no
coração sertanejo, ainda hoje a viver uma miserável condição social. Este o
sentido do humano nas diversas imagens do homem que o autor dá cor, dimensão e
vida.
O
chão que se move no interior do Brasil é o das areias movediças que não
permitem, e continuam a negar a incontáveis gerações, o exercício simples de
uma cidadania. Alerta veemente também a lembrar, aquilo que Millôr Fernandes
sentenciou: O Brasil tem um enorme passado pela frente.
(*)
Krishnamurti Góes dos Anjos. Escritor, Pesquisador. Autor de: Il Crime dei
Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século
– Contos, Embriagado Intelecto e outros contos e
Doze Contos & meio Poema. Tem
participação em 22 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de
Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina,
Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro publicado
pela editora portuguesa Chiado, – O Touro do rebanho –Romance histórico, obteve
o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União
Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance.
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