O intruso, Ruy Espinheira Filho
Em parceria com Machado de Assis
I
Logo que sua mãe morreu,
Dom Casmurro foi visitar a casa
da infância e juventude,
porém ela, a casa,
a casa toda,
o desconheceu.
II
No quintal, nada sabiam dele
a aroeira, a pitangueira, o poço,
a caçamba velha e o lavadouro.
O tronco da casuarina,
que ficava ao fundo,
em vez de reto,
como outrora,
tinha agora um ar de
ponto de interrogação,
como se pasmasse diante
do intruso.
III
Correu, então, o Dom, os olhos
pelo ar,
buscando algum pensamento que ali pudesse
ter deixado
e não achou nenhum.
IV
Também não entendeu
o sussurro da ramagem,
que sugeria ser a cantiga
das manhãs novas.
E o grunhido dos porcos lhe pareceu
uma espécie de troça concentrada
e filosófica
V
Sim, tudo estranho, estranho.
E então deixou,
o Dom,
que demolissem a casa.
VI
Bem, fico pensando nesse homem
do Capítulo CXLIV
e encontro a mim mesmo em casas e cidades
idas e vividas. O intruso,
o estranho
que elas jamais viram antes.
Porque, na verdade, não sou
quem ali esteve e viveu. Sou
outro,
outro ser e outra
vida.
VII
Não pode, pois, haver reconhecimento.
Nem de mim nem de qualquer
na mesma condição. A menos
que tenhamos deixado Argos
à nossa espera,
pois, mesmo quase cego e coberto
de sarna e pulgas,
nos receberá com seu último alento
e nossa última lágrima.
Argos, apenas ele, que,
na verdade,
não reconhece o intruso e sim
o que nele, cão, nunca partiu...
VIII
Mas, afinal, quantos de nós merecem
essa fidelidade de milênios?
IX
Não pode haver diversa conclusão:
acabamos sendo,
todos,
aquele do Capítulo CXLIV,
que se retira como desconhecido porque
nunca realmente esteve ali.
X
Foi outro quem ali esteve,
outro.
E o que vem, o intruso,
não consegue enganar a casa,
a aroeira, a pitangueira, o poço,
a caçamba velha, o lavadouro,
a casuarina,
a cantiga da ramagem e a sabedoria irônica
dos porcos,
que não acreditam em fantasmas.
Ruy Espinheira Filho é poeta, romancista, professor, cronista e jornalista. Tem mais 20 livros publicados, entre eles As sombras luminosas, Elegia de agosto, Memória da chuva, Sob o céu de Samarcanda e Um rio corre na Lua.
O Intruso é poema inédito em livro e foi publicado pelo jornal Cândido, da Biblioteca Publica do Estado do Paraná, edição de dezembro 2018.
- Foto> Paolo Paes, Flica
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