quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

O INTRUSO, de RUY ESPINHEIRA FILHO



O intruso, Ruy Espinheira Filho

                                  Em parceria com Machado de Assis


I
Logo que sua mãe morreu, 
Dom Casmurro foi visitar a casa 
da infância e juventude, 
porém ela, a casa, 
a casa toda, 
o desconheceu.

II
No quintal, nada sabiam dele
a aroeira, a pitangueira, o poço,
a caçamba velha e o lavadouro.
O tronco da casuarina, 
que ficava ao fundo, 
em vez de reto, 
como outrora, 
tinha agora um ar de 
ponto de interrogação, 
como se pasmasse diante 
do intruso.

III
Correu, então, o Dom, os olhos
pelo ar, 
buscando algum pensamento que ali pudesse
ter deixado 
e não achou nenhum.

IV
Também não entendeu 
o sussurro da ramagem, 
que sugeria ser a cantiga
das manhãs novas. 
E o grunhido dos porcos lhe pareceu 
uma espécie de troça concentrada 
e filosófica 

V
Sim, tudo estranho, estranho. 
E então deixou, 
o Dom, 
que demolissem a casa.

VI
Bem, fico pensando nesse homem 
do Capítulo CXLIV 
e encontro a mim mesmo em casas e cidades 
idas e vividas. O intruso, 
o estranho 
que elas jamais viram antes. 
Porque, na verdade, não sou 
quem ali esteve e viveu. Sou
outro, 
outro ser e outra 
vida.

VII
Não pode, pois, haver reconhecimento. 
Nem de mim nem de qualquer 
na mesma condição. A menos 
que tenhamos deixado Argos 
à nossa espera, 
pois, mesmo quase cego e coberto 
de sarna e pulgas, 
nos receberá com seu último alento 
e nossa última lágrima. 
Argos, apenas ele,  que, 
na verdade, 
não reconhece o intruso e sim 
o que nele, cão, nunca partiu...

VIII
Mas, afinal, quantos de nós merecem 
essa fidelidade de milênios?

IX
Não pode haver diversa conclusão: 
acabamos sendo, 
todos, 
aquele do Capítulo CXLIV, 
que se retira como desconhecido porque 
nunca realmente esteve ali. 

X
Foi outro quem ali esteve, 
outro. 
E o que vem, o intruso, 
não consegue enganar a casa, 
a aroeira, a pitangueira, o poço, 
a caçamba velha, o lavadouro, 
a casuarina, 
a cantiga da ramagem e a sabedoria irônica 
dos porcos, 
que não acreditam em fantasmas. 


Ruy Espinheira Filho é poeta, romancista, professor, cronista e jornalista. Tem mais 20 livros publicados, entre eles As sombras luminosasElegia de agostoMemória da chuvaSob o céu de Samarcanda e Um rio corre na Lua. 

O Intruso é poema inédito em livro e foi publicado pelo jornal Cândido, da Biblioteca Publica do Estado do Paraná, edição de dezembro 2018.
  • Foto> Paolo Paes, Flica

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