Dei de cara com este livro numa pilha em promoção. Romance premiado, literatura colombiana, casal aposentado em vilarejo assolado pela guerrilha... hum, não podia deixá-lo para trás. Mesmo porque estamos em tempos de estocar alimentos para possível quarentena coronina, daí catei outros livros e os guardei no bagageiro do carro, meu mobilar.
"Na cozinha, a bela cozinheirazinha - eles a chamavam de 'a Gracielita' - lavava os pratos em cima de um banquinho amarelo. Eu conseguia vê-la através da janela sem vidro da cozinha, que dava para o jardim. Mexia seu traseiro, sem saber disso, ao mesmo tempo em que esfregava: atrás da diminuta saia branquíssima cada canto do seu corpo se chacoalhava, ao ritmo frenético e consciencioso da tarefa: pratos e xícaras chamejavam em suas mãos trigueiras: de vez em quando uma faca serrilhada aparecia, luminosa e feliz, mas, em todo caso, como que ensanguentada. Eu também sofria, além de sofrer por ela, essa faca como que ensanguentada."
O professor Ismael Pasos, 70 anos, é o narrador. Espirituoso, de humor ácido, o professor experimenta uma agitação de luxúria visual pelas vizinhas, a mulher do brasileiro e a mocinha agregada à família, sempre vigiado pela esposa Otília. Mas o vilarejo está no centro de refregas que envolvem três exércitos, dois deles paramilitares. Aí está o material com o qual Rosero trabalha, pelo ponto de vista do professor aposentado, sem receber seus proventos há dez meses e resistindo aos convites da filha para deixar o vilarejo e ir com ela morar, distante do horror sempre iminente.
"Quando falou, ela já havia pressentido, na metade de um segundo, que eu não a indagava com os olhos. De repente, descobria que, como um torvelinho de água turva, repleto de sabe-se lá que forças - pensaria ela - em seu íntimo, meus olhos sofrendo, espiavam para baixo, para o centro entreaberto, sua outra boca em posse de sua voz mais íntima. 'Pois olhe para mim', gritava sua outra boca, e gritava apesar da minha velhice, ou, mais ainda, por causa da minha velhice, 'olhe para mim se você se atrever'."
Os exércitos perturbarão ainda mais a vida do professor Pasos e a de todos no vilarejo. Ali está como que a nação inteira submetida a uma guerra incompreensível, em que poucas vezes se identifica quem ataca quem, mas se sabe bem quem sofre as piores consequências ao final: o povo desarmado, continuamente ferido, raptado, sequestrado e morto, em meio às refregas. Ninguém está livre das balas, nem mesmo aqueles que pagam aos exércitos por proteção. Uma vida impossível, mas que persiste, como o grito do vendedor de empanadas brotando de uma esquina qualquer.
"Na esquina da rua, não longe de onde me encontro - minha testa apoiada na porta, as mãos levantadas contra a madeira -, aparece outro grupo de soldados. Não são soldados, descubro, inclinando ligeiramente a cara. São sete, ou dez, com uniforme de camuflagem, mas usam botas pantaneiras, são guerrilheiros. [...] Vêm na minha direção, acho, e então uma descarga da esquina oposta a eles os sacode e prende por completo sua atenção: correm para lá, encolhidos, apontando seus fuzis, mas o último deles [...] leva a mão ao cinturão e então me joga, sem força, em curva, algo assim como uma pedra."
Rosero esmiúça o caos da guerra. A energia que se dedica ao amor e ao trabalho voltadas, então, à sobrevivência. A transmutação do padrão ético, dos interesses, dos projetos; de repente, todos marionetes sem cordões expostos ao turbilhão da queda, da morte banal, da ausência de estradas a seguir, de autoridades a quem apelar, de qualquer abrigo ao último suspiro de uma alma. Em meio ao tiroteio, o professor procura por sua mulher, que o procura: boa parte da narrativa se dedica a essa busca pelas ruas e casas.
"'Todos para a praça', um dos capangas grita para a gente, mas é como se ninguém o escutasse: caminho ao pé de um casal de vizinhos, sem reconhecê-los, e sigo ao lado deles, sem me importar em averiguar em que direção. 'Eu disse todos para a praça', ouve-se de novo a voz, em outro lugar. Ninguém liga, ouvimos nossos passos cada vez mais apressados: de um instante a outro, as pessoas correm, e eu com eles, este velho que sou, afinal de contas estamos desarmados [...]"
Fica, por fim, o ser humano à sua própria procura, por dentro e por fora, se esgaravatando em delírio, em luta permanente com o que sonha dominar, em busca do objetivo primeiro, do qual não se lembra mais; até mesmo pelo seu próprio nome, por sua morte exclusiva e redentora, que às vezes tarda ou se recusa a se apresentar. Que homem é esse, que lugar habita, que fome carrega, que rumo tateia, que lhe reserva a porta em que bate desesperado? Talvez o cano do fuzil em seu pescoço traga a inteira resposta a todas essas questões. Ou talvez tudo seja apenas repetição de episódios que insistimos em reencenar.
Os exércitos é o tipo de encontro que justifica qualquer risco, o inesperado com o qual sonhamos, todo o tempo que a ele se dedicar, e até mesmo o cheiro de pólvora e sangue que persiste à nossa volta, após a leitura.
Os exércitos, de Evelio Rosero, com tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro, Editora Globo, 2010.
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