domingo, 15 de março de 2020

OS EXÉRCITOS, de Evelio Rosero



     Dei de cara com este livro numa pilha em promoção. Romance premiado, literatura colombiana, casal aposentado em vilarejo assolado pela guerrilha... hum, não podia deixá-lo para trás. Mesmo porque estamos em tempos de estocar alimentos para possível quarentena coronina, daí catei outros livros e os guardei no bagageiro do carro, meu mobilar.

     "Na cozinha, a bela cozinheirazinha  -  eles a chamavam de 'a Gracielita'  -  lavava os pratos em cima de um banquinho amarelo. Eu conseguia vê-la através da janela sem vidro da cozinha, que dava para o jardim. Mexia seu traseiro, sem saber disso, ao mesmo tempo em que esfregava: atrás da diminuta saia branquíssima cada canto do seu corpo se chacoalhava, ao ritmo frenético e consciencioso da tarefa: pratos e xícaras chamejavam em suas mãos trigueiras: de vez em quando uma faca serrilhada aparecia, luminosa e feliz, mas, em todo caso, como que ensanguentada. Eu também sofria, além de sofrer por ela, essa faca como que ensanguentada."


      O professor Ismael Pasos, 70 anos, é o narrador. Espirituoso, de humor ácido, o professor experimenta uma agitação de luxúria visual pelas vizinhas, a mulher do brasileiro e a mocinha agregada à família, sempre vigiado pela esposa Otília. Mas o vilarejo está no centro de refregas que envolvem três exércitos, dois deles paramilitares. Aí está o material com o qual Rosero trabalha, pelo ponto de vista do professor aposentado, sem receber seus proventos há dez meses e resistindo aos convites da filha para deixar o vilarejo e ir com ela morar, distante do horror sempre iminente.

     "Quando falou, ela já havia pressentido, na metade de um segundo, que eu não a indagava com os olhos. De repente, descobria que, como um torvelinho de água turva, repleto de sabe-se lá que forças  -  pensaria ela  -  em seu íntimo, meus olhos sofrendo, espiavam para baixo, para o centro entreaberto, sua outra boca em posse de sua voz mais íntima. 'Pois olhe para mim', gritava sua outra boca, e gritava apesar da minha velhice, ou, mais ainda, por causa da minha velhice, 'olhe para mim se você se atrever'."

     Os exércitos perturbarão ainda mais a vida do professor Pasos e a de todos no vilarejo. Ali está como que a nação inteira submetida a uma guerra incompreensível, em que poucas vezes se identifica quem ataca quem, mas se sabe bem quem sofre as piores consequências ao final: o povo desarmado, continuamente ferido, raptado, sequestrado e morto, em meio às refregas. Ninguém está livre das balas, nem mesmo aqueles que pagam aos exércitos por proteção. Uma vida impossível, mas que persiste, como o grito do vendedor de empanadas brotando de uma esquina qualquer. 

     "Na esquina da rua, não longe de onde me encontro  -  minha testa apoiada na porta, as mãos levantadas contra a madeira  -,  aparece outro grupo de soldados. Não são soldados, descubro, inclinando ligeiramente a cara. São sete, ou dez, com uniforme de camuflagem, mas usam botas pantaneiras, são guerrilheiros. [...] Vêm na minha direção, acho, e então uma descarga da esquina oposta a eles os sacode e prende por completo sua atenção: correm para lá, encolhidos, apontando seus fuzis, mas o último deles [...] leva a mão ao cinturão e então me joga, sem força, em curva, algo assim como uma pedra."

     Rosero esmiúça o caos da guerra. A energia que se dedica ao amor e ao trabalho voltadas, então, à sobrevivência. A transmutação do padrão ético, dos interesses, dos projetos; de repente, todos marionetes sem cordões expostos ao turbilhão da queda, da morte banal, da ausência de estradas a seguir, de autoridades a quem apelar, de qualquer abrigo ao último suspiro de uma alma. Em meio ao tiroteio, o professor procura por sua mulher, que o procura: boa parte da narrativa se dedica a essa busca pelas ruas e casas. 

     "'Todos para a praça', um dos capangas grita para a gente, mas é como se ninguém o escutasse: caminho ao pé de um casal de vizinhos, sem reconhecê-los, e sigo ao lado deles, sem me importar em averiguar em que direção. 'Eu disse todos para a praça', ouve-se de novo a voz, em outro lugar. Ninguém liga, ouvimos nossos passos cada vez mais apressados: de um instante a outro, as pessoas correm, e eu com eles, este velho que sou, afinal de contas estamos desarmados [...]"

     Fica, por fim, o ser humano à sua própria procura, por dentro e por fora, se esgaravatando em delírio, em luta permanente com o que sonha dominar, em busca do objetivo primeiro, do qual não se lembra mais; até mesmo pelo seu próprio nome, por sua morte exclusiva e redentora, que às vezes tarda ou se recusa a se apresentar. Que homem é esse, que lugar habita, que fome carrega, que rumo tateia, que lhe reserva a porta em que bate desesperado? Talvez o cano do fuzil em seu pescoço traga a inteira resposta a todas essas questões. Ou talvez tudo seja apenas repetição de episódios que insistimos em reencenar. 

     Os exércitos é o tipo de encontro que justifica qualquer risco, o inesperado com o qual sonhamos, todo o tempo que a ele se  dedicar, e até mesmo o cheiro de pólvora e sangue que persiste à nossa volta, após a leitura. 



Os exércitos, de Evelio Rosero, com tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro, Editora Globo, 2010.





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