Sozinha, no meio da sala, começou a dançar.
[...]
Começou a dançar. Usa um vestido lilás de tecido encorpado, bem justo no busto e apertado na cintura por um cinto, a saia curta e armada, acima do joelho. O chachachá não lhe sobe pelas pernas e sim pelos quadris e pela coluna vertebral, submetendo o corpo a uma espécie de ondulação lasciva, de relaxamento, de dar e não dar, de oferta e recusa, como um trote em soluços por uma estrada que volta sobre si mesma continuamente, como uma obstinação voluptuosa, como uma brincadeira entre as ondas, como a realização rítmica do amor, frenético, medido, preciso, cansado, insaciável, como a febre espiritual que à noite toma as florestas da África quando a alma se perde em imaginações e lembranças, como o lívido clarão de uma ruela de onde, lá no fundo, uma voz nos chama, como os lábios vermelhos ambíguos que por um instante, à luz dos faróis, se entreabiram numa promessa muda, como a triste juventude que, rindo, se lança e se contorce feliz na escuridão que a destruirá, aspiração, até mesmo ideal, vibração profunda da matéria visceral, vozes das terras que jamais conheceremos, imitação do triunfo que jamais se cumprirá, cruel e suave martelo que bate de três em três vezes com uma breve pausa, de três em três vezes ele bate, ele bate de três em três vezes e mergulha nas cataratas do 17 de abril, batendo de três em três vezes nas rochas e a água, enlouquecendo com o choque, torna-se serpente, epilepsia, harpa, perdição, mas Laide flutua com os saltos altos e finos, levita, flutua, brinca e ri com toda a destreza de menina inteligente, encontrando a seiva irresistível e verdadeira da vida.
Este pequeno trecho de "Um amor", do escritor italiano Dino Buzzati (Ed. Nova Fronteira, 1985), revela um pouco do mundo de maravilhas que o romance representa. (O que o amor pode fazer a um homem já maduro, até onde pode levá-lo, quanto dele e de suas ausências pode suportá-lo, o que o faz querer mais desse amor que, quase sempre, é uma rima pobre e desesperançada, e se esse amor brota de uma jovem prostituta, como suportar seu desdém, sua divisão anárquica e comercial, o que o faz querer mais das migalhas desse amor, ou a querer mais de uma mera promessa de amor, por mais que por ele se pague, qual o limite de exaustão do amor, inexiste? O amor nos possui sem se deixar possuir?) Utilizei uma frase de "Um amor" como epígrafe do conto "A putinha da Vitória", que integra a coletânea "As baianas", e volto sempre ao romance (agora que Mônica encontrou meu exemplar perdido nas estantes) para leituras avulsas e emocionadas.
Sim, é mesmo lindo, intenso, arrebatador. Quero ler também, agora que o encontrei em suas estantes poeticamente caóticas. Bjsamovc
ResponderExcluir"Acontece na vida de fazermos coisas de que gostamos sem restrições, coisas que parecem vir das nossas entranhas. 'Poema em quadrinhos' é, para mim, uma destas, como 'O deserto dos tártaros', como 'Um amor'." (Dino Buzzati).
ResponderExcluirJá li "O deserto dos tártaros" - que, talvez, tenha sido o livro que mais me marcou - e "Poema em quadrinhos", que é fabuloso. Para completar a trilogia - que parece ter saído das entranhas de Buzzati - só me falta ler "Um amor". Com a sua indicação, Carlos, aumentei a minha vontade. Vou comprá-lo. Amo Buzzati.
Um abraço.
Vale a pena adquirir o exemplar, Lidiane. "Um amor" é desses livros para se ter ao lado, para leituras constantes. Como vc leu acima, M. já está com meu exemplar. Mayrant andou vendo exemplares à venda em livrarias do centro de SSA e é possível encontrá-lo também em sebos e na Feira de Livros que a FPC tem promovido. Aí em FSA está acontecendo uma Feira de livros, não? Boa sorte com "Um amor". Abr. (carlos barbosa)
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