domingo, 31 de julho de 2016

PROUSTIANAS 8


   O amor não é talvez mais do que a propagação daqueles redemoinhos que, depois de uma emoção, perturbam a alma.

   Pois a verdade muda tanto para nós, que os outros custam a reconhecer-se nela.

   Aliás, o ciúme é dessas doenças intermitentes, cuja causa é caprichosa, imperativa, sempre idêntica no mesmo doente, às vezes inteiramente diversa em outro. [...] Poucos ciumentos há cujo ciúme não admita certas derrogações. Este consente em ser enganado contanto que lho digam, aquele contanto que lho escondam, no que um não é menos absurdo que o outro, pois se o segundo é mais verdadeiramente enganado, visto que lhe dissimulam a verdade, o primeiro reclama, nessa verdade, o alimento, a extensão, o renovamento de suas penas.

   [...] saciada antes mesmo de posta em estado de apetite [...]

   Quando ela dormia, eu não precisava mais falar, sabia que não era mais olhado por ela, não tinha mais necessidade de viver na superfície de mim mesmo.

   De cada vez que mexia com a cabeça, criava uma nova mulher frequentemente não imaginada por mim.

   Quando passamos de uma certa idade, a alma da criança que fomos e a alma dos mortos de quem saímos veem jogar-nos às mãos cheias as suas riquezas e os seus maus fados, pretendendo cooperar nos novos sentimentos que experimentamos e nos quais, apagando-lhes a antiga efígie, os refundimos numa criação original. [...]  Temos que receber, a partir de uma certa hora, todos os nossos parentes chegados de tão longe e reunidos em torno de nós.

   Os dois seiozinhos, implantados no alto, eram tão redondos que davam a impressão menos de fazer parte integrante do corpo do que de ter amadurecido ali como dois frutos; o ventre (dissimulando o lugar enfeado no homem pelo que é nele como numa estátua desvendada o grampo que tivesse ficado cravado) fechava-se na junção das coxas por duas valvas de uma curva tão desmaiada, tão repousante, tão claustral como a do horizonte quando o sol escureceu.


Extraídos do volume "A prisioneira", de "Em busca do tempo perdido", de Marcel Proust, em tradução de Lourdes Sousa de Alencar e Manuel Bandeira, 2a edição, 2a reimpressão, Editora Globo, Porto Alegre, 1971.

 






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