terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

O ROMANCE LUMINOSO, de MARIO LEVRERO (2)




     Mario Levrero é um dos pseudônimos do escritor uruguaio Jorge Varlotta. Pode ser, portanto, a personagem ficcional principal de "O romance luminoso" sem necessidade de maiores explicações. Ele é ele mesmo, reticências, o escritor recluso que ministra oficinas e luta com a fracassada escrita de um romance, escrevendo um diário. E dessa forma, "O romance luminoso" talvez não possa ser classificado como autoficção ou autobiografia. O que lemos resulta, sem fim e sem cabo, em peça de imaginação vertiginosa calcada na perturbadora realidade de um sessentão repleto de esquisitices e hipocondria(s). A burla premiada.

     Volto a "O romance luminoso" porque ainda faço sua digestão e sobre ele disse aqui muito pouco. Duas partes o compõem: o diário e o rascunho do romance iniciado em 1984. Ou talvez não seja nada disso, e sim: um romance sobre o desespero da solidão que o envelhecimento traz, junto com certa impotência para a execução de projetos, o que deságua em sonhos perturbadores e visões fantasmagóricas. Um romance acrescido de outro romance, de menor extensão, sobre experiências luminosas vividas pelo protagonista, de 44 anos de idade, mas o mesmo que escrevinha depois o diário. Ou não, como bem quer o mano Caetano.

     O tal sessentão diarista é louco, assim dado pelo psiquiatra, que o vem consultar exatamente por ele ser um louco, como também pela própria filha que com ele tem pela primeira vez uma conversa fluida e sincera, simplesmente, por ter aberto o diálogo com a frase "O senhor é louco". Que alívio, não? Mas é um louco que investiga suas loucuras, utilizando a linguagem como ferramenta preciosa, para nosso deleite. Leitor compulsivo de romances policiais, maníaco por jogos de computador, é um que tem muitas amigas; com umas passeia, com outras se deita e por aí vai, como sói acontecer aos sessentões. Dizem.

     Fato é que Levrero promove as entradas do seu "Diário da bolsa" com precisão matemática, ou por conta dos recursos de um dos programas de computador que tanto curte customizar. E com dúvidas deliciosas, que empurram a narrativa em várias direções, mas sempre com espírito novidadeiro e gracejante. Vou encerrar essa conversa de maluco com algo que me surpreendeu, em meio a tanto tédio, lá pela página 544, já no corpo do primevo "O romance luminoso": a narrativa impressionante e espetacular de um coito anal. Durmam com essa, se puderem. Páginas 544 e 545, para ser mais preciso.

      Mais umas mostras:

      "Não digo que tenha me curado dessa invalidez infame, autogerada e cultivada quase amorosamente durante anos, mas digo, sim, que estou conseguindo fazer coisas que até poucos dias atrás eram impensáveis. Não quero imaginar tudo o que ainda  me resta fazer; não é terapêutico fixar-se nas carências. Já tenho provas de que, como sou capaz de me entregar a essas tarefas espantosas de tão entediantes, a boa atividade surge por si só, como uma exigência natural do corpo, como uma consequência natural e lógica. Vale a pena chegar ao tédio, mergulhar no fundo deste, porque dali nascem os impulsos corretos."

      "Seria necessário encontrar uma fórmula para que os artistas pudessem sobreviver sem a necessidade de traficar seus direitos autorais; seria preciso aniquilar esse sistema podre de editores chupadores de sangue, do livro como objeto, das perseguições a quem faz fotocópias ou pirateia. É verdade: um escritor que acerta com um título que cai no gosto popular pode enriquecer da noite para o dia (dificilmente neste país, claro), sem falar dos autores de software. Mas todos sabemos que enriquecer é uma forma também de empobrecer e, de todo modo, os que querem entrar nesse sistema, tudo bem, que vão em frente."

     "É o delírio, a busca pela catarse, a imposição do trabalho que devo realizar - queira ou não - com a única, fugidia esperança de chegar algum dia a um ponto final, ficar vazio, exausto, limpo - e pronto para outra. Pois devo insistir no fato de que nenhuma das experiências luminosas e nenhuma das experiências libertadoras serviram para poder dizer "pronto", "atingi", "era isso". Além do mais, se alguma vez busquei - ou até se consegui - alcançar algo que me permitisse dizer "pronto", "atingi", agora tenho bastante consciência de que isso só se alcança com a morte, e contra isso, pois, disparo mais do que contra o demônio em si. Que ninguém se engane: não tenho nenhuma grande sabedoria para transmitir e espero nunca ter. O nome da sabedoria é: arteriosclerose."

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