Fazia tempo que não maltratava tanto um livro. O exemplar de "O romance luminoso", do escritor uruguaio Mario Levrero, que li ao longo de meses, andou pelo banco traseiro e tampa de bagageiro, às vezes pelo piso do carro, por conta de freadas bruscas, entrando e saindo de consultórios médicos (sendo esquecido aqui e ali), largado de mão por semanas, agarrado novamente com avidez, pois...
Bem, Enrique Vila-Matas disse que "foi com ele até a derrota final, incapaz de deixar de lado", o que não se deu comigo por não-sei-o-quê. Pois é viciante, mesmo. O prazer da escrita provoca sua replicação na leitura. Minha leitura se deu assim, em blocos intensos, interrompida por demandas obrigatórias e exasperantes. Mas não o perdi de vista. E devo confessar que reli trechos para engatar a retomada da leitura.
Não creio que "O romance luminoso" venha a "se tornar o novo farol do que será escrito num futuro próximo no nosso continente", como apregoa Joca Reiners Terron no texto da orelha. Mario Levrero entrega-se ao texto com volúpia, dedica-se a nele se encontrar, a reconstruir momentos e experiências luminosas e a encontrar o que ainda para ele não se fez luminoso. Ou seja, produz um texto que se desdobra em orações infindas, cada uma sendo (aí, sim) fachos de luz prenhes de aroma e gosto. Comprometido apenas com a literatura, com o sonho e a loucura humanos. Sei não, turminha anda por aí comprometida com questões sociais mais candentes e ainda muito apegada a frases curtas, ordem direta e ao abortamento e assassinato em massa de adjetivos e advérbios. "Tudo pelo facilitário", como diria um amigo meu.
Levrero escreveu esse tal romance em 1984, que ficou inconcluso (e talvez ainda esteja) até o episódio da bolsa Guggenheim, em 2000, ocasião em que o retoma. Ou não, posto que a partir de então Levrero escreveu o que veio a chamar de "Diário da bolsa", e que constitui a primeira e maior parte de "O romance luminoso", publicado aqui pela Companhia das Letras, em 2018, com tradução de Antonio Xerxenesky.
Destaco alguns trechos do "Diário da bolsa":
"É difícil descobrir os próprios preconceitos, que se grudam na mente acompanhados de uma espécie de soberba, não sei explicar de que estranha maneira isso ocorre. Esses anões se instalam ali como ditadores absurdos, e os aceitamos como verdades reveladas. Muito de vez em quando, e por algum acidente ou acaso, a pessoa se sente obrigada a rever um preconceito, discutir consigo mesma, erguer o véu, olhar através dele e vislumbrar como é a realidade das coisas. Nesses casos, é possível desarraigá-lo. Mas todos os demais continuam de pé, dissimulados, nos levando de forma desatinada por caminhos errados."
"Estimado sr. Guggenheim, acho que o senhor gastou mal seu dinheiro nesta bolsa que me concedeu com tanta generosidade. Minha intenção era boa, mas a verdade é que não sei o que aconteceu com ela. Já se passaram dois meses: julho e agosto, e a única coisa que fiz até agora foi comprar essas poltronas (que não estou usando) e consertar o chuveiro ( que também não estou usando.) Passei o resto do tempo jogando no computador. Nem sequer posso entregar como equivalente este diário da bolsa; o senhor deve ter notado como deixo assuntos em suspenso e depois não consigo voltar a eles. Bom, só queria lhe dizer essas coisas. Muitas saudações, e mande lembranças à sra. Guggenheim."
"Ao levantar a persiana do quarto, vi uma vez o cadáver de uma pomba num telhado muito próximo deste edifício. Tinha visto já faz uns dias, e voltei a vê-lo recentemente, e nessa segunda oportunidade vi a companheira da pomba morta em atitude de velório, parada muito quieta a um ou dois metros do corpo, de costas para mim, olhando fixamente para o morto. Ou quem sabe para onde, porque quando uma pomba quer olhar algo à sua frente, põe a cabeça de lado, como os vesgos; mas a verdade é que seu bico encarava o centro do corpo morto. Hoje tornei a vê-la; parece que é verdade o que li sobre o luto das pombas."
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