domingo, 14 de abril de 2019

DIVISADERO, de MICHAEL ONDAATJE





      A melhor receita de vida é estar aberto a novas leituras, a novos autores, daqui e d'alhures, deste ou de outros tempos; melhor receita não só para um crescimento pessoal saudável, mas para uma atitude de correta honestidade intelectual. De outra maneira é como se aprisionar a um território e suas parcas possibilidades  -  por mais que as consideremos plenas  -  ou a um cânone gélido - por mais que o consideremos insuperável. Como saber, se não experimentarmos? Eu sou um que se considera imperfeito, incompleto e ansioso por conhecimento  -  o que sou, o que tenho, o que conheço, o que sei, ou o que penso ser, ter, conhecer e saber, parece-me muito pouco. E foi assim que cheguei a Ondaatje, por exemplo. Já o conhecia de O paciente inglês, filme adaptado de um romance seu. Mas não o havia lido, ainda; e isso não fazia parte dos meus planos. Até que topei com...

      Divisadero é um romance contemporâneo clássico. Narrativa entrecortada e vertiginosa, polifônica, com narradora principal complexa, mais metaliteratura e a presença dos textos clássicos dando suporte à construção dos personagens e de tudo o mais. Colette, Dumas, Hugo, Stendhal, uma verdadeira homenagem à literatura e à cultura francesa, não transcorresse grande parte do enredo em solo francês, em tempos diversos. Sem falar em Nietzsche e em Lupicínio Rodrigues. É que...

    Bem, seguindo o autor, podemos dizer que Divisadero tem na sua construção algumas frases pilares: "Temos a arte, para que não sejamos destruídos pela verdade", de Nietzsche, é uma delas, a que Anna, a narradora principal, recorre sempre como viga mestra de sua existência. Uma outra: "Se acabarei sendo o herói de minha própria vida, ou se esse posto será ocupado por outra pessoa, é o que estas páginas precisam mostrar", que bem poderia ser a epígrafe do romance. E os versos de Lupicínio, em Um favor, mal traduzidos como "Se algum de vocês a vir em suas jornadas  -  gritem-me, assobiem...", mas que o autor reconhece nas notas ter sido "o que começou essencialmente este livro".

         Divisadero se ocupa de rupturas, de partições, da busca que fazemos de nós mesmos no outro. Anna se descobre mulher com o irmão de criação, Cooper, gerando com isso o esfacelamento de seu núcleo familiar. Mais tarde, na França, Anna pesquisa a vida do poeta Lucien Segura, conhece e namora o cigano Rafael, enquanto Cooper enfrenta as durezas da jogatina e Claire, a outra irmã de criação, investiga casos para a promotoria da Califórnia. A biografia do poeta francês levantada por Anna, parte final do romance, reproduz o cerne da proposta de Ondaatje: as muitas vidas que vivemos possuem divisas bem definidas e pouco somam umas às outras. Mas deixam marcas indissolúveis, que arrastamos para sempre. É que, como afirma Anna no texto: "É a fome, aquilo que não temos, que nos mantêm juntos".


Divisadero, de Michael Ondaatje, tradução de Augusto Pacheco Calil, Companhia das Letras, SP, 2008.

     

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