Vivemos em estado de guerra, nos sussurra o romance de Tea. Estamos dentro dela, em seus círculos mais internos e profundos. Lá fora caem bombas, acima os aviões, distantes os homens que acionam seus comandos; em nós finca-se o horror das explosões ou o aço quente de um projétil, enquanto colhemos legumes no quintal ou visitamos o que resta de um zoológico. Cercas se tornam fronteiras, sotaques definem vida ou morte. E morte é o grande banquete que continuamente se prepara. Nós somos os humanos cercados pelo fogo e somos eles, também, os que definem os círculos e o alcance do incêndio. Nem sempre.
Em "A noiva do tigre", a jovem escritora norte-americana de origem iugoslava, Tea Obreht, perfila personagens inesquecíveis. Crianças, homens e mulheres que habitam os tempos e os lugares com suas particularidades encantatórias, enigmáticas e emocionantes, enquanto as bestas vistoriam casas e carros e dizem quem pode passar ou viver. A Cidade e povoados dos Balcãs nos são apresentados por dentro, nas vozes de seus moradores, e nos sentimos como nos sertões, entre crendices e ervas, entre deuses e feras. Digo assim pois, decompor a narrativa, expor o enredo talvez diga menos do romance. Mas, vamos lá.
Natalia é uma jovem médica em trabalho comunitário. O avô de Natalia, também médico, é sua principal referência. No meio de uma viagem assistencial, Natalia toma conhecimento da morte do avô, ocorrida num povoado distante. As lembranças da convivência com o avô, das histórias que ele contava, em especial, as da noiva do tigre e do homem sem morte, tornam-se o eixo central do romance. A guerra veio e se foi, e retornou tempos depois, e agora já é rescaldo desta última, com clima de uma próxima que se engendra, pois ao fazer seu trabalho, Natália não deixa de ser "do outro lado", e aqueles que criam problemas "são do seu lado, doutora". Mais uma vez, não há como deixar de notar como essa bipolarização se universalizou. O estado de guerra, também.
Mas é o talento narrativo de Tea Obreht que ressalta e impressiona. Agradou-me, especialmente, sua habilidade em imprimir cor e graça à narrativa a partir de personagens secundários e situações periféricas, como o papagaio declamador da primeira parte - ri às escâncaras, me impregnou sua curta passagem pelo texto. Conheceremos o avô-menino e entenderemos o motivo de ele levar Natalia ao zoológico para ver o tigre e o porquê de carregar sempre consigo um velhíssimo exemplar de O livro da selva, de Kipling. Aqui nos encontramos e nos emocionamos. Aqui está o povo abandonado pelas autoridades e pela ciência, resolvendo e criando seus imbróglios na turvação das crenças, lendas e produção incessante de mortes.
Tudo parece se resumir a esse estertor social, dos tempos do avô-menino e da noiva tigre, ao tempo do avô-médico e o homem sem morte, até o de Natalia-médica e o avô-morto, esse tempo em que as assombrações persistem, bruxas ordenam e uma família inteira se desloca até o território inimigo para revirar um vinhedo atrás de um corpo enterrado durante a guerra. Da mesma forma que Natalia corre risco de morte para resgatar os pertences do avô-morto. Tudo que é novo nasce de algo putrefato, a raiz antiga de toda invenção. Enquanto as crianças servem de cobaias, de alvo preferencial da violência, de argamassa das gerações, de desculpa para atos de desespero e de esperança renovada.
Uma leitura que me reportou a "O rei branco", de G. Dragomán, e "O navio branco", de T. Aitmátov, por seus personagens infantis e pelos ambientes de violência autoritária e disputas territoriais. Uma leitura inesquecível, como acompanhar a travessia de um elefante pelas ruas da cidade deserta e adormecida, ou andar ao lado de um tigre pela mata com a mão posta em seu dorso, ou descobrir o motivo de um cão ficar por dias ao lado de uma caçamba à beira da estrada. Um grande romance, vencedor do Orange Prize 2011. E como estamos no Brasil, um romance praticamente desconhecido, vendido em saldão no mercado de frutas por dez reais.
A noiva do tigre, de Tea Obreht, tradução de Santiago Nazarian, publicado pela editora Leya, SP, 2011
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