Um livro fundador
Fernando
Bonassi*
Evento estético e político
fundamental das últimas décadas em nosso país foi a entrada da periferia das
grandes cidades na paisagem da cultura. Hoje não se discute a força que tem
esse território, mas durante muito tempo esta espécie de “não-lugar” permanecia
sem voz que a expressasse... Até aparecer Sabor
de química, em 1976; nele se operavam maravilhas: primeiro, o talento do
autor ao dar forma artística a uma realidade que ainda se processava. Vivia-se
o fluxo migratório dos anos 70, e os brasileiros que chegavam para construir a
“cidade grande”, terminavam pelos arrabaldes baratos, como estoque de mão de
obra da indústria. Roniwalter Jatobá decidiu olhar para isso, e o espanto em
seu texto era a ousadia de penetrar o mais profundo da alma “dessa escória”,
traduzir a angústia e a loucura da miséria por dentro, e não apenas como elemento
sociológico de um plano intelectual. Havia também a justaposição das duas
partes do livro, com histórias do sertão e da cidade: ao acompanhar o
deslocamento de um personagem mais típico de uma certa cultura rural,
Roniwalter registrava, para além de seu próprio campo e tempo histórico, a
transição do regional para o urbano, que acontecia no imaginário brasileiro.
Em 1978 vem as Crônicas da vida operária, em que o
inferno do trabalho se junta à atmosfera da ditadura e produzem um poderoso
painel de nossa experiência recente. São narrativas sobre a inutilidade do
esforço, a destruição dos laços afetivos e a mutilação dos corpos pelas
necessidades materiais, o homem virado em número e valor de produção; tramas
sombrias que, à luz do que vivemos, permanecem atuais.
Tiziu,
novela na terceira parte deste livro, apareceu em 1994 e conclui o projeto
literário. Na trajetória de Agostinho, que volta derrotado à sua cidade de
origem, ecoam todas as vozes de Roniwalter -- as que têm nomes e as anônimas,
as que gritam seu desespero e as que contemplam o fracasso em silêncio -- todas
elas tecidas com enorme vitalidade poética.
O leitor tem nas mãos um
livro fundador daquilo que somos e fizemos de nós mesmos.
*Fernando
Bonassi é escritor e roteirista
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