Jantávamos cedo lá em casa. Uma mistura de sobras do almoço e café com leite, acompanhados de cuscuz, beiju, aipim, batata doce, essas iguarias da mesa sertaneja. Éramos beiradeiros que raramente comiam peixe: minha mãe passou mal, certa feita, com uma espinha de peixe atravessada na garganta. E assim tangíamos o tempo, entre sol e lua, alimpando o terreiro de nossa exígua existência.
Nelsinho possuía um porta-objetos fixado na parede de nosso quarto. Ele mesmo havia feito com sobras de madeira e pintado com uma paisagem de colina e coqueiros. Ali ficavam a escova de dentes, o desodorante e o creme pra cabelo Trim. Foi de cabelo engomado e cheirando a Rastro que deixou nossa casa para ir até a praça da igreja encontrar-se com a namoradinha. Era pra ter sido assim, algo corriqueiro.
Mas deu-se que topou com um caminhão de gado, guiado por um admirador, que lhe ofereceu carona. Nelsinho não quis subir na boleia. Por que não, se estava enfatiotado para encontro amoroso? Talvez por sua natureza aventureira, seu arrojo natural, Nelsinho galgou a carroceria e sentou-se no alto da gaiola, tomando vento... e o que mais? Não sabemos, ninguém veio nos dizer desses momentos que antecederam a queda.
E o caminhão subiu a rua 1º de Janeiro, contornou rente a lateral da igreja e bordejou o jardim. Por que Nelsinho não desceu ali, se o jardim era o seu destino? Talvez estivesse cedo e a namoradinha ainda não se fizesse presente, ignoramos. Fato é que ele seguiu trepado no alto da gaiola do caminhão de gado. O motorista bem que poderia ter contornado mais uma vez na outra extremidade da praça, retornando pelo lado oposto, mas não, decidiu seguir para a pracinha do cais. E para chegar na praça do cais era preciso passar pelo beco de Seo Artur Matias.
E foi ali, na entrada do beco, que se deu o baque. Cruzava o beco a fiação elétrica, e os postes de madeira não eram tão altos como os atuais. O caminhão entrou no beco e quando sua carroceria já desaparecia das vistas de quem observasse de um banco da praça, um corpo caiu de lá de cima no chão duro. O fio mais baixo alcançou o pescoço de Nelsinho, derrubando-o do alto da gaiola. Gritos, o caminhão para, enquanto Nelsinho levantava-se do chão, sacudindo a areia da roupa. Dá pra ver as pessoas acudindo-o, ele recusando apoio, sentindo aos poucos as dores todas avançarem por seu corpo e juízo adentro.
Mesmo nesse estado, Nelsinho foi a pé, por toda a praça da igreja, a maior da cidade, até o Posto de Saúde. Lá, já meio tonto, tiraram-lhe a roupa e lhe deram um banho de mangueira no fundo do prédio. E depois o levaram até um quarto, onde o médico da cidade veio lhe medicar. Enquanto isso, o povo corria até nossa casa para contar da tragédia seus detalhes mais crus e pesados. E o horror daquilo tudo suspendeu a arrumação do tempo, os gritos de minha mãe calaram o mundo, e fomos todos até o Posto de Saúde, onde uma multidão se aglomerava à porta.
Lá estava o herói deitado numa cama de ferro, agitando-se de forma desordenada, o rosto inchado pelo hematoma da cotovelada no jogo de domingo e pela pancada no chão do beco, o pescoço marcado pelo estrago que o fio lhe fizera de um lado a outro, trechos sem pele, tudo já ficando arroxeado. Minha mãe jogou-se ao seu lado, e tudo era puro desespero e impotência. Não havia na cidade recurso hospitalar, a bê-erre estava em construção e o mundo civilizado quedava-se distante demais.
Também eu fiquei ao lado da cama e vi crescer em Nelsinho a agonia de um cérebro perturbado por traumatismos e hemorragias. Uma agonia que teve seu auge quando ele se agarrou ao pescoço de minha mãe, que se entregava sem reação, exigindo de meu pai e outras mãos certo esforço para separá-los. E depois disso, Nelsinho aquietou-se. Caiu no beco por volta das 19h e entrou em coma às 23h.
Meus sentimentos, amigo. Texto forte, da sua marca, um relato que há tanto lhe assombra. Que coisa é a vida! O seu 23 de setembro é a perda, cravada num ano 9, enquanto o primeiro dia de Libra, quarenta anos depois, na primavera do Hemisfério Sul, marcou a criação da Flica nessa cidade litoral em que moramos. Um abraço fraterno, luz para o teu amado, teu gigante!
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