domingo, 15 de setembro de 2019

AS COISAS QUE PERDEMOS NO FOGO, de Mariana Enriquez


 

    É possível viver na bolha.
    Qualquer que seja.
    Só não sei como se realiza tamanha façanha.
    Talvez o fanático mais próximo explique bem como se faz.
    E são tantos hoje em dia...
    Mas eu prefiro manter distância das bolhas e bitolas.
    Pois amo a literatura.
    E na literatura a vida acontece plena.
    Sem meias verdades.
    Na literatura, claro, que se impõe como tal.
    Ando atormentado pelos contos de Palahniuk e de Enriquez.
    Ambos da escola das sombras e dos horrores humanos.
    Mundo absurdo, vida surreal, gente demoníaca, ódio e loucura nas ruas e nas casas.
    Pancadão... Palahniuk fica pra um depois.
    Trato aqui dos contos de As coisas que perdemos no fogo, de Mariana Enriquez.
    Jornalista e professora, Enriquez narra sobre o que a sociedade procura esconder.
    O que quase ninguém quer tomar conhecimento.
    O que poucos acreditam que aconteça na casa ao lado.
    Casa e logradouro de qualquer lugar, mas calha ser na grande Buenos Aires.
    As criaturas da noite, crianças abandonadas, mulheres maltratadas, homens extemporâneos.
    Sim, há uma pegada feminista na abordagem dos temas, e por que não?
    Homens seguem espancando e matando mulheres a todo instante.
    Se um desses desaparecer, como se fazia na Ditadura Militar, que mal há?
    Se mulheres decidem se queimar antes de serem queimadas por eles, quem há de?
    Por que não se divertir enquanto se gerencia o horror dos abandonados?
    A que deus se sacrifica tantas crianças desovadas em terrenos baldios?
    A quem respeita a grande máfia dos miseráveis? Ou o que ela respeita?
    De tudo isso, há algo novo ou que não se tenha feito antes?
    É loucura o que provoca ou a loucura é resultado?
    Tem alguém aí que não experimenta uma depressão assim ou assada?
    De repente o rio Riachuelo supera o Tietê em miasmas e favelas.
    E acontece que o limbo produz vida em profusão.
    E que a miséria pode, sim, ignorar normas e rituais antigos.
    E a fome pode se alimentar de outras fomes.
    E o adorável ser humano assumir condições até então impensáveis.
    Deixar de ser, simplesmente. Ou ser diverso.
    Desaparecer nas ruas, nas rodovias, dentro de um quarto.
    Essas coisas que perdemos no sangue derramado.
    Nas ruínas e nos lixões.
    Que perdemos no fogo que nos arde, em que ardemos uns mais que outros.
    Quem zela por nós, afinal?
    Quem merece o nosso zelo?

 
   As coisas que perdemos no fogo, de Mariana Enriquez, tradução de José Geraldo Couto, publicado pela editora Intrínseca, 2017.

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