terça-feira, 24 de setembro de 2019

24 DE SETEMBRO 1969, QUARTA-FEIRA, O DIA DA MORTE



   Como aquele dia chegou e amanheceu, não faço a menor ideia. Sei que ficamos no Posto de Saúde até altas horas e que retornamos para nossa casa a granel, em momentos variados, pelo escuro das ruas, pois em Ibotirama a luz elétrica, então, era a diesel e desligada às 22:30h. Talvez eu tenha dormido pesado, menino que era, assustado que estava, esgotado por cansaços diversos, talvez.

   Daquele começo de manhã de quarta-feira nada recordo que sirva a esta contação, a não ser de minha figura mirrada descendo a rua 1º de Janeiro a responder pessoas sobre o estado de saúde do meu irmão: "Na mesma, na mesma." E depois retornando ao Posto e depois em casa novamente. Era primavera lá fora e o mais gélido outono possuía o nº 3 da travessa Nossa Senhora da Guia. Sim, lembro do meu pai, em algum momento daquele dia, de barba por fazer e cenho absolutamente fechado, chapéu nas mãos, num silêncio insuperável. E da casa ficando atopetada de gente em providências arrepiantes.

   E foi de uma maneira seca feito um raio sobre nossa cabeça que, por volta das 11h, meu pai irrompeu em casa e disse: "Ele morreu".  A partir de então, minha mãe prostrou-se na cama do casal aos gritos e em pranto, ou em pranto entrecortado por gritos. Minha irmã e eu agarrados a ela, num chorar desmedido, tentávamos dar-lhe algum consolo, fazendo promessas de bom comportamento. Havia aquela câmara dolorosa que abrigava minha mãe e pelo resto da casa uma agitação de preparo do velório. Tudo pra mim era espantoso e inédito. E muito tempo depois reviveria aquele ambiente, naquela mesma casa, quando eu mesmo conduzi os preparativos para os velórios de meus pais. Aquela casa jamais me abandonará.

   Desse cenário, salto para a igreja lotada, a multidão ocupando o adro, escadarias e parte da praça, a cidade inteira ali presente. Vejo o caixão aberto, o rosto macerado de Nelsinho, os chumaços de algodão sobressaindo da pele morena e dos hematomas, as centenas de ginasianos fardados, e depois dos colegas mais próximos carregando o caixão, em revezamento, até o cemitério. Eu me espremia entre o povaréu, procurando ficar próximo do caixão, na longa jornada até o túmulo aberto. Lá, o caixão repousaria sobre o montículo de terra retirada, enquanto o sol nos abandonava de chofre, e o prefeito, meu padrinho Eládio Almeida Pinto, fazia o discurso de louvação do jovem estudante morto, do craque de futebol que o nosso futuro perdia, do filho muito amado de seus compadres. Lembro, lembro, lembro...

   Cinquenta absurdos anos se passaram. Vez em quando bate essa emoção retada e incontornável. Meus onze anos de então incorporaram esses cinquenta na marra. Toda sorte de tropelia me acometeu de lá pra cá e mesmo assim tenho resistido, pois resistir foi a parte que me coube. Saibam que, quando minha hora for construída e alcançada, quero depois virar cinzas. E se não for dar trabalho demais a quem ficar, que se me espalhem no meio do rio São Francisco, em frente ao cais de Bom Jardim, a Ibotirama falada. Adianto que só serve se for no meio do rio, onde não dá pé, que é sempre o melhor jeito de navegar.


Um comentário:

  1. Meu amigo, que texto, que texto! Você transformou a sua dor em literatura. Bravo! Luz para o teu gigante.

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