Mais do que da morte de vovô, eu sentia medo daquele luto gigantesco a arrastar seus joelhos protagonizado pela minha avó, sozinha, como vou pode viver sozinha! Vovó batia contra o peito e implorava, aos pés de vovô morto, para não continuar vivendo sem ele. Eu só conseguia mais respirar se fosse rapidamente, e mesmo assim com dificuldade. Vovó estava tão fraca que eu tinha a impressão de que o corpo dela cairia ao chão e ali ficaria, totalmente mole, mole e redondo. Na televisão, uma mulher grande pulava na areia e se alegrava com isso. Aos pés de vovô, vovó gritou chamando os vizinhos, eles desabotoaram a camisa dele, os óculos de vovô resvalaram, sua boca estava torta - e eu recortei, como sempre fazia quando não sabia mais o que fazer, pequenas figurinhas de papel, mais estrelas para o meu chapéu de mágico. Apesar do medo, e tão pouco tempo depois de uma morte, eu via que o cachorro de porcelana de vovó havia caído de lado em cima da televisão, e que os pratos com as espinhas de peixe da noite passada continuavam sobre a toalha de mesa de crochê. Eu ouvia cada uma das palavras dos vizinhos perambulando pela casa e entendia tudo apesar dos gemidos e lamentos de vovó. Ela se agarrava às pernas de vovô, vovô escorregava para a parte da frente do sofá. Eu me escondia no canto, atrás da televisão. Mas mesmo atrás de mil televisões eu não teria conseguido me esconder do rosto desfigurado de vovó, nem de vovô virado, quase caindo do sofá, nem do pensamento de que meus avós jamais haviam sido tão feios quanto agora.
Um trechinho do romance "Como o soldado conserta o gramofone", de Sasa Stanisic (perdoem-me não saber colocar os sinais gráficos que pontuam o nome do autor em sua língua natal), escritor nascido na atual Bósnia-Herzegovina, traduzido para o nosso português por Marcelo Backes e publicado aqui pela Record em 2009. Lendo, gostando do que leio e lembrando um ensaio de James Woods presente em "A coisa mais próxima da vida", publicado pela editora Sesc, que degustei no final de semana passado - se não me engano, "Observação séria" -, em que chama atenção para a qualidade dos romancistas em observar e captar os detalhes da vida e de uma cena. Esse trecho de Stanisic me pareceu exemplo precioso.
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